Fernando Andrade entrevista a escritora Rosângela Vieira Rocha

FERNANDO – Por que escolheu a estrutura de correspondências para escrever seu romance?  Em que ela ajudou na formatação do enredo com a narradora/personagem contando ao médico sua relação com Ivan Hernández?

ROSÂNGELA – A história foi construída com capítulos alternados, no presente e no passado. O presente da narradora e personagem principal, Helen, é a sua luta diária para manter sua pequena joalheria em funcionamento, especialmente para lançar sua primeira coleção de joias. O maior sonho de Helen sempre foi ser designer, criar suas próprias coleções. Com enorme esforço, ela conseguiu realizar o sonho de seu pai, que era ourives, de possuir sua própria joalheria. Ela, que ainda bastante jovem perdeu os pais num acidente, tomou para si o sonho dele, provavelmente por ter sido uma maneira de mantê-lo vivo e próximo. Seu relacionamento com Ivan é contado no passado, devagar, ponto por ponto, episódio por episódio, caso por caso, pois a história requeria uma narração bastante minuciosa, a fim de que o leitor pudesse ter uma ideia clara da estranha personalidade de Ivan Hernández e de como ele conseguiu tecer a teia de toxidez em torno de Helen. Para traçar esse perfil, a troca de e-mails – que aliás não é uma troca, pois Helen faz, desde o início, um pacto com o médico de que seria um monólogo – me pareceu o caminho mais adequado. Poderia ter tomado outro, ou outros, mas o autor nunca sabe explicar seus motivos, em nível consciente, de maneira objetiva e precisa.

FERNANDO –  Você fez uma pesquisa detalhada sobre joias. Em que o tema a auxiliou para dar ao romance conotações ora metafóricas ou imagéticas sobre os personagens e o enredo?

ROSÂNGELA –  Houve, sim, uma pesquisa consistente, mas eu já tinha certo conhecimento, fiz vários cursos de joalheria, há muitos anos. Quis, numa certa época, ser joalheira. Cheguei a fazer cursos de design, de gemologia e de lapidação manual de pedras. Tenho um par de brincos de prata feitos por mim, inclusive a liga. A profissão da personagem principal foi uma escolha intuitiva, como quase todas na literatura, mas pedras preciosas sempre me pareceram um exemplo acabado da pureza e da clareza, pois quase todas possuem luz, brilho. A oposição entre essa pureza e o caráter dúbio e duvidoso de Ivan, que chega a ser até mesmo monstruoso, sob vários aspectos, pareceu-me interessante na carpintaria da narrativa. Há outras oposições, também, como a beleza das joias e a feiura das atitudes e do comportamento de Ivan, que vai sempre se agravando, ao longo do livro. Pessoalmente, acho pedras preciosas uma das coisas mais belas do mundo. São de muitas cores e matizes, o brilho que lhes é inerente também varia, como se representassem a luz que Helen possui, como ser humano, e que falta tão completamente a Ivan. Ocorrem-me outras oposições, como a consistência e dureza das pedras e a inconsistência e liquidez de Ivan, que não possui contornos muito precisos. É como se ele se desfizesse, se desmanchasse, fosse de papel, não existisse de fato. Sua natureza é camaleônica, muda de cor a todo momento, para iludir as pessoas. É um predador social e tem muito pouca consciência de si mesmo, pois é incapaz de autocrítica.

FERNANDO – Ivan parece um homem sem qualquer empatia pela alteridade, não respeita e nem considera o outro. Até que ponto você usou uma masculinidade que muitos homens operam nas relações sem afeto, sem companheirismo, e quando este estado masculino pode ser considerado uma patologia? Como foi o desenho de Ivan dentro de um perfil narcísico?

ROSÂNGELA –  Essa pergunta requereria uma resposta muito extensa, pois diz respeito ao tema central do livro, o chamado narcisismo perverso, que é um transtorno de personalidade. Esse transtorno não afeta somente o gênero masculino, mas parece ser mais comum entre os homens. Ou talvez tenha maior visibilidade entre os homens, pois alguns traços chegam a ser até “naturalizados” na sociedade patriarcal. Como pano de fundo, temos o machismo enraizado na sociedade, que não afeta apenas os homens, é algo que se estende e existe em todos os gêneros e classes sociais, especialmente no Brasil. Não sou psicanalista, mas baseada nas leituras que fiz e nas conversas com profissionais da área, prefiro falar em traços narcísicos. Há pessoas que possuem alguns traços, sem que isso possa ser considerado fora do comum, fora da média, digamos. O narcisismo está situado num espectro, e até certo ponto precisamos dele para atuarmos no mundo, especialmente na formação, consolidação e manutenção da autoestima. Contudo, quando esses traços se tornam fortes a ponto de a pessoa não reconhecer o valor do outro, desqualificando-o completamente ou vendo-o apenas como instrumento para a realização dos seus desejos e vontades, estamos, sim, diante de alguém que tem um transtorno de personalidade narcisista ou uma estrutura de personalidade narcisista. É uma questão de grau, digamos. Grande parte dos especialistas não considera o narcisismo uma patologia – sob a alegação de que não há medicamentos e nem, segundo eles, uma cura completa para o transtorno. Seria uma maneira de olhar e de estar no mundo, ou seja, algo gravíssimo e incurável. Diante de pessoas assim, o único caminho é a fuga.

FERNANDO –  O médico e psicanalista funciona como uma escuta quase analítica, pois ele atua sobre a fala da narradora nos silêncios. Fale um pouco sobre isso.

ROSÂNGELA – No início da história, quando o especialista, Dr. Jorge, pede a colaboração de Helen como último recurso para tentar acessar a paciente que se encontra sob seus cuidados e não coopera no tratamento, mantendo um silêncio obstinado, a concordância da joalheira se dá de maneira condicional. Ela propõe ao médico um pacto e ele o aceita: será a única a falar, não vai permitir a intervenção do psiquiatra em nenhum momento. Não me parece que ele atue sobre o discurso de Helen, pois não pontua nada, como ocorre numa relação terapêutica real. A crença de que psicanalistas não dizem nada nunca é um mito; até os freudianos mais ortodoxos fazem pontuações, interjeições, utilizam a linguagem corporal em algum momento, é impossível fugir a isso no processo terapêutico. Mas nenhuma manifestação é permitida ao Dr. Jorge. Para tentar esclarecer melhor: já me perguntaram, por exemplo, por que a narradora/personagem não deu voz ao especialista para fazer o “diagnóstico” de Ivan, se não constituiria uma espécie de assimetria ela o fazer, como ocorre no romance. Seria o tradicionalmente esperado, não é? O mais bem situado falaria, a voz seria dada ao homem sábio, ao cientista macho, o elemento mais forte da relação. Foi justamente para fugir disso que não foi dada voz a ele. Devo esclarecer, também, que Helen não diagnostica ninguém e deixa isso muito claro na história. Nem o próprio especialista poderia fazê-lo, sem conhecer o paciente. Era essencial, na história, a fuga ao lugar comum, preestabelecido, de que quem fala é o homem, quem sabe é o médico; não, é Helen que descobre sozinha a extensão e o tipo de armadilha em que caiu. Isso é não é de modo algum impossível, especialmente em se tratando de uma mulher tão bem-dotada quanto Helen, o que é mostrado desde o início. Sua perseverança, sua obstinação, sua honestidade e inteligência são atributos que ficam muito claros no decorrer da história. Helen não é fraca, é forte, tão forte que consegue sair de uma relação absolutamente tóxica e abusiva. Para concluir, é bom acrescentar que o compromisso da literatura não é com o real e sim com o verossímil; e a personagem Helen é alguém que podemos encontrar. Tem peso, tem voz, tem humanidade, é uma pessoa “possível”.

http://www.arribacaeditora.com.br/autores/rosangela-vieira-rocha/

 

(Entrevista publicada no site Literatura e Fechadura: http://www.literaturaefechadura.com.br/2019/08/31/fernando-andrade-entrevista-a-escritora-rosangela-vieira-rocha/)

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