Depois da obra-prima que foi “O indizível sentido do amor”, o novo trabalho de Rosângela Vieira Rocha vinha revestido de responsabilidade. E “Nenhum espelho reflete seu rosto” (Editora Arribaçã) deu conta do recado à altura da autora e de seus antecessores. Romance calcado num tipo de personagem doentio, requereu da escritora pesquisa, mergulho profundo no tema, ao mesmo tempo espinhoso e necessário.
O grande barato da melhor literatura contemporânea, de Rosângela Vieira Rocha, inclusive, é justamente a mescla de memória, pesquisa e ficção. A autora já havia feito isso brilhantemente em “O indizível”. Agora, com “Nenhum espelho”, isso se reforça no distanciamento entre protagonista e autora. A joalheira Helen, ou melhor, designer de joias, pode não ter nada a ver com a escritora, jornalista, professora e advogada, mas é inevitável comparar, por exemplo, o lançamento da coleção de peças que a protagonista prepara ao longo da narrativa ao do livro “O indizível sentido do amor”, obra mais preciosa, no meu entender, da coleção de joias da escritora.
Quanto à urgência do tema, é impressionante como Rosângela consegue, ao contar a história de Helen e sua relação tóxica com o “príncipe encantado” que encontrou na internet, falar de uma realidade vivida por milhares de mulheres (e inclusive homens) que até então não se davam conta do grau doentio dessas relações. Não está nas redes sociais o problema, mas na teia tão bem urdida por personalidades identificadas, freudianamente, pelo narcisismo perverso. Sua capacidade de envolvimento, sedução, dominação. Sua inteligência brilhante casada à ausência de empatia. Sua incapacidade de perceber o outro senão como objeto a ser usado, controlado e descartado de acordo com seus interesses.
A narrativa de Rosângela desvenda os mecanismos por meio dos quais isso se dá. A partir da experiência relatada por Helen ao médico de uma paciente que se saiu pior que ela, os fatos, casos, diálogos, “detalhes tão pequenos”, mas tão significativos, descortinam o que, à vítima, muitas vezes parece um delírio persecutório, uma paranoia injustificada. Não é. Esse tipo de figura circula por aí, no dia a dia de qualquer pessoa, e é preciso estar alerta para entender que é possível não se deixar cativo da própria carência.
“Nenhum espelho reflete seu rosto” contribui para jogar luz sobre tema tão delicado, e Rosângela Vieira Rocha o faz com a maestria de sua escrita direta, seca, sem arroubos de adjetivação. A aula de joalheria serve de contraponto ao universo do mal visitado pela protagonista e alivia o leitor do mal-estar. Há saída.
(*) Clara Arreguy é escritora. Resenha publicada neste endereço: http://clara-arreguy.blogspot.com/2019/09/mecanismos-do-mal-descortinados.html