Por Luiz Renato Souza Pinto
A construção de um livro não é apenas a edificação de um texto, mas burilamento e associação de ideias, desenvolvimento de um fluxo narrativo em que se mesclem elementos condutores de sentido que convirjam para um desfecho. Sou da opinião de que leitores se formam em casa, na própria família. A falta da leitura é um dos males, uma patologia contemporânea.
Estive em Minas Gerais, no ano de 1988, quando morava no Rio de Janeiro e arrumei emprego para trabalhar na Enciclopédia Britânica. Fui vendedor de Barsa; de qualquer forma, livros. Em três meses de labuta vendi apenas uma depois de percorrer por três meses duas cidades do estado: Ipatinga e Inhapim. O comprador era um casal; entravam e saíam do quarto e o negócio se desfazia. Nessas voltas meu supervisor recuperava o negócio e jogava de novo para mim. Sem ele eu não teria realizado a venda.
Lendo o livro “Nenhum espelho reflete seu rosto”, de Rosângela Vieira Rocha, lembro-me dessa história. A autora é natural da cidade de Inhapim. A mãe de sua protagonista é dessas pessoas que, mesmo sem muito estudo, acreditava na força dos livros: “Mamãe era ambiciosa, a seu modo. Não frequentou a universidade, só concluiu o segundo grau. Habitou-se às tarefas domésticas, embora não as apreciasse. Sempre foi uma grande leitora, especialmente de mitologia” (ROCHA, 2019, p. 28).
Há toda uma mitologia em torno dos livros, do conhecimento aprisionado. Enquanto vou lendo lembro-me perfeitamente dos poemas de Olavo Bilac e das histórias do caçador de esmeraldas. Pois a obra gira em torno de pedrarias e “A descoberta das nossas minas de esmeraldas é que elevou o país à posição privilegiada de maior produtor mundial de gemas, explicava” (idem, p. 39-40).
A finalização de um romance, creio, se parece muito com a de uma joia rara, e para isso, contribui em muito a arte do esmero. “Só quem lapidou manualmente pedras preciosas sabe a concentração que a tarefa requer, desde o corte até o polimento” (idem, p. 44). O relacionamento abusivo da narradora com o golpista argentino é devastado de maneira linear, através de um procedimento que mantém a construção apolínea, em que pesem os elementos dionisíacos na construção de sentido.
A história cai no colo do leitor, como um colar repleto de magia, com seus brilhos e o caimento de uma joia rara, como a leitura sugere. “Um rosto e um pescoço que realcem o colar e os brincos de turmalinas Paraíba, por exemplo. Como deveriam ser? Compridos, magros, maçãs do rosto salientes, orelhas pequenas? Até que ponto esses atributos realmente contam?” (idem, p. 78).
Apesar dos golpes recebidos na relação abusiva, a herdeira de uma pequena joalheria não se deixa abater e, enquanto contribui para que outra mulher se cure do mesmo mal aplicado pelo terrível senhor Hernandéz, o leitor vai tomando pé, com certo detalhamento, de todo o mal sofrido até então, enquanto se deleita com a preparação de uma coleção de joias desenhada por ela. Sua estreia como design é entrecortada por e mails a um médico que busca elementos para o tratamento de uma estilista misteriosa atacada pelo mesmo homem. Ela segue no diagnóstico de si mesma. “Eu tinha a inédita sensação de que encontrara um duplo, alguém de alma muito semelhante à minha, a pessoa mais parecida comigo que tinha conhecido até então” (idem, p. 80-1).
Segundo Keppler, há sete modalidades do duplo. “o perseguidor, o gêmeo (a) bem-amado (a), o tentador, a visão de horror, o salvador, o duplo no tempo – mas poderíamos acrescentar outros mais” (FERNANDÉZ, 2005, p. 263). Penso que se aplica melhor a este caso a do perseguidor. Embora exista a possibilidade de uma combinação com outros modelos, o que não vem ao caso aqui discutir. A estrutura do romance parece conter dois arcos de uma única voz. O primeiro, em que tomamos pé da relação da protagonista com a arte da ourivesaria, e o segundo, que corre em paralelo, com os mecanismos de compreensão da personalidade doentia do outro (seu duplo) para que o leitor acompanhe o moto contínuo de seu drama, sabendo que ela superou a tudo, pois a narrativa nos dá essa certeza.
Ela conhece muito de gemas, de pedrarias. Sabe que a “cor é completamente diferente das turmalinas comuns, confundidas por Fernão Dias Paes Leme com esmeraldas, fato imortalizado por Olavo Bilac em seu poema” (idem, p. 111). A leitura de “Nenhum espelho” reflete a urgência de compreendermos o mundo e as plataformas contemporâneas de comunicação e linguagem. “Talvez esse palavrório não passe de papéis postos numa garrafa lançada ao mar. Existe um destinatário, é certo. Mas essa trabalheira só terá sentido se puder ajudar a moça” (idem, p. 120).
O palavrório todo a que se refere navega, denotativa e conotativamente, em busca de marinheiros nesse mar intenso, o da sexualidade. Rosângela escreve porque tem o que dizer. A gente lê porque precisamos escutar a nós mesmos, no íntimo de cada qual. Penso em Manoel de Barros, aquele excretor de insurgências tamanhas pela poesia. Como também em Ferreira Gullar, o mago de palavras duras. “Se nos sentirmos completos o tempo todo, não temos necessidade de criar. A alegria é algo que desconhecem e confundem prazer com êxtase” (idem, p. 238).
REFERÊNCIAS
BRAVO, Nicole Fernandéz. Duplo. In: BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. 4 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
ROCHA, Rosangela Vieira. Nenhum espelho reflete seu rosto. Cajazeiras: Arribaçã, 2019.
(Publicado em fevereiro de 2020, em https://www.cidadaocultura.com.br/ivan-hernandez-o-terrivel/?fbclid=IwAR2bU64peT0ZlsCthhN5NzTHG9Oe4w6d-J8xnV0pZEFXN0aCosBkE8rzR6E)