“O coração pensa constantemente” é o mais recente romance da escritora Rosângela Vieira Rocha publicado nesses tempos nefastos de sofrimento e morte. A autora que tem 14 títulos publicados é sem favor uma das vozes de destaque na literatura brasileira contemporânea. Dela, li alguns títulos que ficaram vivos na memória, a exemplo de “O indizível sentido do amor”, que li e resenhei. Na oportunidade, comentei sobre uma de suas melhores facetas que reencontro agora neste belíssimo “O coração pensa constantemente”. Escrevi então, a propósito daquele outro livro: A autora tem o tem o raro talento de, ao produzir um texto memorialista, conseguir incorporar, talvez involuntariamente, verdadeiro testemunho de época e consequentemente registro histórico. Sobretudo quando na trama romanesca – e já estamos na ficção mais pesada –, entra o crivo da experiência de sua própria vida e a sequente maturidade que daí advém.
Também impressiona sua habilidade cheia de sutilezas, pois consegue lançar mão de procedimentos de elaboração estética usados na narrativa cinematográfica, considerando que a principal técnica de produção deste gênero, a montagem, é constituída por meio de processos de fragmentação. E assim, consegue dar visibilidade notável para o problema da descontinuidade espaço-temporal e da alternância do foco narrativo, porque configura tempos que se alternam entre a recomposição da história e um enredo repleto de mensagem humana.
“O coração pensa constantemente”, é obra de nítidos traços autobiográficos, e que focaliza dentro dessa técnica de flashback a história de vida de duas irmãs. Luísa e Rubi. Luísa é a narradora. Já adulta recorda o seu tempo de juventude, resgatando os termos de equacionamento dos (bem-sucedidos ou fracassados) processos de aprendizado de si e da irmã mais velha. Desdobram-se os capítulos e vemos o filme daquelas duas jovens nascidas e criadas em pequena cidade do interior. Ambas mostram-se inicialmente ingênuas, mas abertas, cada qual em sua medida, à sensibilização pelo ambiente. A protagonista Luísa, ao longo do tempo, anseia por identificar a sua vocação, mesmo a contrapelo dos limites colocados pela ordem social, descobrindo por si mesma sua via própria de afirmação. Já Rubi, embora intima da irmã, segue outra trajetória que incluiu perdas, desencontros e sofrimento físico, pois desde tenra idade apresenta saúde um tanto quanto fragilizada. Ressalte-se que o ambiente familiar codeterminou a formação inicial das personalidades das protagonistas, em uma ambiência que nem sempre soube compreender, ou lidar com as singularidades. Talvez Rubi, por ser mais velha, estivesse mais presa a certos padrões normativos. Ao incluir na narrativa a micropolítica das relações pessoais da família e das irmãs, a autora desvenda todo um processo formativo, no qual fica evidente a lacuna entre o real e o ideal. Entre os desejos de afirmação pessoal e as condições limitadas de afirmação contextualmente oferecidas. A trama romanesca vai descortinando aspectos psicológicos das individualidades ante a sociedade castradora em que viveram.
Vale também referir inclusive, e aí outro aspecto positivo da obra, o fato de que a narradora mostra-se observadora atenta das falas e ações de outros personagens. As experiências são confrontadas com juízos, pensamento e crenças e ela amadurece moral e cognitivamente. Temos então que passado saudoso ou imaginado (quem saberá?), quando a vida poderia ter seguido outra direção se apresenta. Positivamente a memória é elemento decisivo para a caracterização das protagonistas, o que confere maior peso à condição inata (psicológica e espiritual), das singularidades.
TRECHO:
“Há sempre resquícios do passado, lodos ancestrais, belezas antigas, joias usadas, perfumes que já não sentimos, mas que continuam impressos na memória olfativa, palavras dos que não podem mais falar, mas que ainda gritam dentro de nós, palavras vivas, pois nada morre realmente. Que alívio, essa aposta de olhos vendados, essa crença no caos, o conhecimento de que é da matéria disforme que poderá surgir o ouro alquímico, talvez.” P. 94.
Luísa expõe as escolhas e vivências da irmã Rubi, mescla outras vivências comuns na construção de um companheirismo cheio de cumplicidades veladas ou não, e que nos ajudam inclusive a compreender também certas relações conflituosas decorrentes das escolhas que as duas empreendem ao longo da vida. Há uma rememoração de familiares e acontecimentos cheia de sensibilidade. Costumes e formas de pensar. Do footing em praça pública (aquela paquera tão inocente dos jovens), aos hábitos ‘machistas dos homens de família’, dos passeios em bosques, às brincadeiras infantis. Dos usos e costumes das décadas de 50 e 60 do século vinte, vamos de capítulo a capítulo, caminhando para a atualidade muito sensível e crítica de uma senhora que em pleno século XXI, escreve seu livro rememorando hoje em plena pandemia que assola o mundo (solitária e reclusa em um apartamento).
TRECHO:
“O vírus é um mensageiro estranho, parece que veio só para mostrar que o rei está nu, que o tal Estado mínimo é uma invenção tramada no inferno, num congresso diabólico, presidido por Satanás. As desigualdades sociais aparecem sem nenhuma maquiagem, impossível escondê-las por mais tempo, é a explosão do sistema econômico como o conhecemos, a crueldade que se arrasta há centenas de anos neste país está nua em pelo. Não lhe parece estranho que um organismo tão pequeno, ínfimo, como um vírus tenha esse poder? Nenhuma máquina fotográfica, nenhuma ressonância magnética, raio-X algum poderia ser mais preciso, mais exato. Arrepiante e assustador, Rubi. Quando isso passar – sim, espero que passe, em algum momento -, não tenho ideia de quem vai ficar para contar essa história. É por isso que ando tão frenética, quero contar agora, tenho medo de esquecer, de adoecer ou de morrer antes de terminar.” P. 136.
Rubi foi cometida aos onze anos de grave apendicite, e ao longo da vida obrigada a fazer diversas operações. De varizes a tireoide, de complicações uterinas, a partos cesarianos, plásticas abdominais, e ainda ter sofrido gravíssimo acidente de automóvel e inúmeros e tantos outros sofrimentos hospitalares. Nunca desistiu de viver todavia. A narrativa avança até seus últimos dias, fragilizada pela doença pulmonar de que padece. A dor e o desespero arrastam-na a ocasionais delírios agressivos de que é exemplo pungente o capítulo XVI (p. 67). Luísa fala-nos da perplexidade dolorosa do humano frente a sua finitude (?), se é que tal coisa existe de fato:
TRECHO:
“Quando o tema é a morte, sinto que caio na esparrela, na armadilha da escrita. Gostaria de dizer muito mais, mas a linguagem não me ajuda. Substituo palavras, mudo sus posições, escrevo e reescrevo parágrafos inteiros. Apesar disso, não fico satisfeita. Escrever sobre a morte é tarefa inglória, exercício de humildade não finalizado. O tema não se exaure, não aceita ser contido em letras, insurge-se contra o escritor, desafia a sua capacidade, rebela-se contra a pretensão de quem acredita ter algum talento para escrever.
Eu sou a morte, ela avisa o tempo todo. Em relação a mim, não venha com frivolidades, fantasias, romantismo, bobagens, gracinhas. De nada adiantam as palavras bonitas, as metáforas sedutoras, as frases mais bem benfeitas e encantadoras. Sou nua, não quero saber de encantamento, não tente hipnotizar alguém me usando como tema. Sou maior que a literatura, existo desde sempre, indomável, soberana. Sou eterna.”
Fica afinal para os leitores o exemplo de vida de Rubi. História de luta e de resistência. Exemplo vivo do que pode o humano mesmo em condições tão adversas de saúde. Além da carreira intermitente de artista plástica, encontrou forças para criar três filhos, e como se não bastasse, adotou mais um! Sim, é fato, e sabemos todos que ela, a morte, recebe a todos sem nenhuma distinção, trata da mesma forma desde o mais simplório humano ao mais douto. A grande questão, é como cada um a recebe…. Talvez por isto, nos pareça que uma das mensagens mais profundas dessa obra seja aquilo que a escritora Roberta Gasparotto identificou: O coração é um músculo que pulsa, sente e pensa, constantemente. É a partir desse pensar-sentir, ou melhor, sentir e pensar sobre o que sente, que somos capazes de refazer caminhos, e sobretudo revivificar nossas relações de afeto.
Coisas da vida que coloca, às vezes, em nosso caminho aqueles outros seres que nascem sobre o mesmo teto familiar, e que misteriosamente se afeiçoam por nós, incondicionalmente, como foi o caso das irmãs Rubi e Luísa. Estabeleceram até o fim, laços que as fortaleceram e, parafraseando a própria obra, se transformaram em sentimento ilimitado, com o condão de dar forma aos seus sonhos, energizando positivamente suas vidas, e finalmente contribuindo para, de alguma forma, alimentarem suas esperanças comuns. Assim a vida. Fornece-nos presenças e convivências que suavizam nossas existências.
Ainda um comentário de caráter pessoal:
“O coração pensa constantemente” é obra dedicada em memória de Edna Vieira Rocha Rezende, que por sua vez, é também autora de um livro de contos – “A duras penas”, que, nos idos de janeiro de 2019, li e resenhei. Após publicada a resenha nos veículos a que tenho acesso, a autora escreveu-me:
“Caríssimo Krishnamurti, sua resenha é linda e soou maviosa como canto de pássaro desconhecido, não contaminado pelo olhar humano. Fiquei surpresa com a citação dos contos. Cada leitor é tocado de forma especial. É você, leitor especial que é, trouxe à baila contos improváveis… Muito obrigada pela sutil apreciação, pelo carinho, pela presteza e pela autoestima que fez aflorar em mim. OBRIGADA, de coração!” … “E meu coração também lhe agradece profundamente por ter tocado de forma tão delicada nessa nossa condição humana… Canto de ave raríssima! rs. Um beijo!”
Hoje, onde quer que você esteja Edna – e com certeza experimentando a doce alegria libertária dos passarinhos sobre os quais você escreveu –, retribuo de público o beijo, com a minha profunda admiração em saber mais um pouco de sua trajetória de vida que, mesmo tão sofrida, ainda reuniu forças de escrever um belo livro dedicado “aos que sofrem”.
Livro: “O coração pensa constantemente” – Romance de Rosângela Vieira Rocha – 1ª edição – Editora Arribaçã – Cajazeiras -PB, 2020, 198 p. – ISBN: 978-65-5854-051-9
(Resenha publicada no Facebook do autor em23 de janeiro de 2021)