O Blog Listas Literárias leu O coração pensa constantemente, de Rosângela Vieira Rocha publicado pela editora arribaçã; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro; confira:
1 – Emotivo e emocionante, O coração pensa constantemente é poesia narrativa em tempos confusos, sombrios e incertos; nele, a memória traz não apenas a universalidade da alma humana e das relações que esta constrói, mas também ao olhar o passado, marcado pelo intenso amor fraternal, não nos deixa de lembrar-nos do presente angustiante que nos assola, isso sem cair na catástrofe, mas sim correr em busca da compreensão e entendimento das coisas e do mundo;
2 – E não deixa de ser curioso que diante uma narrativa que parte de assuntos tão espinhosos, a morte, o luto, também o contexto desta pandemia que nos cobre, Rosângela Vieira Rocha consegue com sua prosa um tanto lírica enfrentar estes espinhos com candura e doçura de uma narrativa palpável e capaz de tocar-nos profundamente. Isso porque, talvez, a despeito da carga que são tais assuntos, há no olhar da narradora não complacência alienada, mas resiliência e sabedoria a lidar com os percalços e também com os inevitáveis da existência;
3 – Nesse sentido temos de observar Luísa, a narradora, já uma senhora de idade que perscruta a memória de modo a transformar a narratária – a irmã Rubi na grande protagonista do romance (é interessante observar que o “diálogo” da narradora com a narratária meio que quase entrega-nos uma narrativa em segunda pessoa); pois são os mistérios e as contradições da irmã mais velha vista pela ótica da irmã mais nova que conduzem a narrativa a partir da morte de Rubi;
4 – Esse aspecto aponta-nos para a narrativa como espécie de encarar o luto, e perca do espelho, da liderança, da admiração; há quase que uma idolatria da narradora pela irmã, o que não impede lucidez na narração, e especialmente mais ao fim do romance, esta ser capaz de observar Rubi num espécie de sintonia mais fina, liberando elementos aos leitores para que estes observem e construam por si mesmos a personagem – a despeito de sua “morte” tão presente na obra;
5 – Esse olhar lúcido, dotado de criticidade que, inclusive, parece-nos responsável por não permitir que a narrativa descambe para uma nostalgia barata, aquela lembrança de um tempo ido a que muitos se tornam prisioneiros; ao lembrar o passado, as experiências infantis e juvenis a narradora liberta-se de qualquer saudosismo, mas não deixa de recordar de forma sadia todas as experiências e lembranças de tudo aquilo que a constituiu;
6 – Desse modo, de uma forma epistolar confessada pela própria narradora, ela dirige-se à irmã resgatando seis décadas e meio que assim estabelecendo crônicas de tempos idos e diferentes; a vida bucólica e distante do interior, a organização da sociedade de um modo distinto do presente, em seus aspectos positivos e negativos num verdadeiro exercício de memória – reconhecendo, aliás, a própria falibilidade desta enquanto expressão de uma realidade; mais um ponto, portanto, para a lucidez com que se mergulha nesse passado;
7 – Todavia, um passado cujo centro focal é claro: a família da narradora, mas acima de tudo, a sua condição de expectadora admirada da irmã mais velha, Rubi. Por mais que sua memória se expraie aqui e ali, Rubi nunca deixará de ser o centro das atenções, da preocupação e do interesse da irmã;
8 – Isso porque nesse processo de compreender o luto e a morte a narradora, situada num tempo em que a irmã acabou de morrer, para lidar com a dor parte para aquilo que mais lhe dá forças: o escrever, a literatura, fazendo deste modo com que o ato de escrever sobre Rubi seja também um ato de resistência à dor;
9 – Aliás, há na construção do romance uma dor dupla. A morte e o luto pela irmã, mas também o presente incerto por causa da pandemia da covid-19. Nesse sentido, vale reforçar a grandeza e a riqueza com que Rocha consegue transpor para o romance os medos deste tempo; mais do que isso, obra que reflete com qualidade os temores de um grupo que é o mais afetado pela doença; a angústia do isolamento, o temor de algo invisível é trabalhado de forma coerente e significativa no romance;
10 – Mas a despeito do potencial depressivo dos temas e assuntos abordados, a poesia deste romance nos leva num caminho melancolicamente contrário, luminoso. Não sei se dou conta de explicar-me por completo, mas há em O coração pensa constantemente justamente uma ode e celebração da utopia, do viver, por mais espinhoso que seja seu debate, ou seja, é um romance que pela candura com que trata tais assuntos torna-se inspirador.
(Texto publicado no blog Listas Literárias)