Sim, o coração pensa constantemente. Alguns pensamentos não nos assustam, pois estão em conformidade com a moral, com a cultura, com os ensinamentos de nossos pais, com aquilo que nos mandam pensar. Porém, há outros tipos de pensamentos: “esses pensamentos parasitas são mais comuns do que parecem, mas ninguém fala sobre eles, por medo da crítica alheia”, alerta a escritora Rosângela Vieira Rocha.
De fundo autobiográfico, escrito durante a pandemia do Covid 19 e a partir da morte de uma irmã-modelo, a autora nos conta os pensamentos/sentimentos de Luísa, em seu processo de luto por Rubi. A narrativa, feita em primeira pessoa, permeada por lembranças em comum, movimenta-se de forma não linear, alcança o avanço terminal da doença de Rubi, reflete para organizar o vivido e trabalha a desmistificação necessária: “Têm de se esforçar bastante para desmistificar as mais velhas e tirá-las do pedestal em que foram postas durante a infância, muitas vezes influenciadas pelos pais. Fazer com que uma irmã mais velha se transforme para nós no que realmente é – irmã, independentemente do ano de seu nascimento – pode ser uma tarefa para a vida inteira.”
Quando nosso objeto fraterno morre, é preciso que não nos tornemos “sobremorrentes”, na expressão usada por Luis Kancyper em sua obra O complexo fraterno. O sobrevivente seria aquele que vivencia o luto e consegue, ao fim, direcionar a libido para outro objeto de amor, “vida que segue”. Já o “sobremorrente” faz do morto uma aparição fantasmática, cujo porão assombrado se situa dentro dele, passando a ser a sua principal ocupação, retroalimentando-se vitimário e vítima e interferindo na realidade ao seu redor.
Para não ser uma “sobremorrente”, Luísa rememora, repete e reflete. Revive e ressignifica. Engana-se quem pensa que a narrativa tem sua fagulha de ignição no capítulo I, quando sentindo o cheiro da bacalhoada (prato que Rubi adorava), Luísa sente náuseas e nós, lendo, começamos a partilhar do mundo fraternal que ela descreve. A fagulha de ignição de O coração pensa constantemente é o capítulo XLVIII em que os sentimentos de incompreensão, ciúme, inveja e ressentimento saltam à cena inequívocos, trazidos por um mensageiro, o filho da irmã morta, o sobrinho querido que quis ferir a tia, talvez movido por seu próprio ciúme, mas alegando lealdade. A narração de Luísa é o esforço de rechaçar, compreender e responder as acusações que vê como absolutamente injustas, quando tudo que fazia era exercer seu amor.
É desta complexidade das relações fraternais que o romance de Rosângela Vieira Rocha fala. Com passagens ternas, ambientação de cidade do interior na maioria das cenas, narração de acontecimentos simples e cotidianos de uma família trabalhadora e pobre, ascendendo para a classe média, ela tece a história de uma grande amizade. De uma relação que se deu na aliança de duas irmãs, facilitando o encontro com o mundo, o enfrentamento da vida, da opressão (familiar e social) que sempre há. A comum rivalidade entre irmãos, que tanto pode beneficiar quanto arruinar o sujeito, cumpriu na história de Luisa e Rubi a etimologia da palavra, em latim, “rivalis”: ter direito à mesma corrente de água.
Ao lado do complexo de Narciso e do complexo de Édipo, participa o complexo fraterno, assim definido por Luis Kancyper: “O complexo fraterno é um conjunto organizado de desejos hostis e amorosos que a criança experimenta com relação aos seus irmãos.” O complexo fraterno pode tanto estruturar quanto adoecer o sujeito. O irmão é o primeiro intruso, o diferente de nós, ao mesmo tempo que é o nosso mais semelhante, aparece como nossa réplica. Força o nosso treino quanto à alteridade, toca em feridas narcísicas, no lugar delicado que pensamos ocupar, como protagonistas, na vida de nossos pais. Faz com que sintamos ciúme (padrão de posse) e inveja (padrão de não posse), pode nos aprisionar no ressentimento e no remorso. O fraterno pode ser nosso aliado na luta geracional, para que Chronos, o pai terrível, não nos devore. Entre irmãs/irmãos pode surgir o amor que se chama amizade. Seja como for, não se fica imune à relação com um irmão/uma irmã, feita de concorrência, amor e ódio.
A dor de Luísa é notada por todo o romance, caracterizada pela falta, pela saudade e pelo desejo de mudar os eventos: “Quero que receba de novo o sopro de vida com que foi concebida”. Ao mesmo tempo, o esforço de racionalização não deixa a narradora sucumbir a essa dor, tampouco a narrativa cair no sentimentalismo. Luísa admite que apesar de cada luto ser único, não é o primeiro que ela vive, “se habitua” e, assim, vai mostrando o quanto de cumplicidade e intimidade existiam nessa relação em que a irmã mais velha era vista como a gema mais rara e bonita (um rubi) pela irmã mais nova, tomada de admiração. Escrever a memória é antecipar-se à desmemória, Luísa materializa na escrita aquilo que, antes, quer salvar para si, contra o tempo: “Preciso escrever – pois corro o risco de me desintegrar, se não o fizer – sobre o que sempre me fascinou em você, a diversidade dos seus talentos, o alcance da sua inteligência, a sua singularidade, a sua irreverência.”
É interessante notar que o movimento de Luísa é o de agradar a irmã, mostrar a ela o quanto a ama, por exemplo, quando preparou a festa de aniversário de 20 anos de Rubi ou quando decorou a igreja para o seu casamento, isso tudo driblando condições materiais escassas. Ao mesmo tempo, fica evidente na narrativa, a consciência da narradora sobre ser ela própria a preferida de seu pai, a despeito de ser Rubi quem o auxiliava no trabalho e na manutenção financeira da casa. É interessante que isso seja afirmado, quando se sabe que a preferência dos pais é motivo de grande disputa no meio fraterno e um motor de consequências psíquicas. Na cena em que, após a morte da irmã, vai buscar alguns objetos que foram dela e que poderiam lhe servir, Luísa vê apenas roupas cômodas, confortáveis e suspeita: “Imaginava que possuísse coisas bonitas, xales, casacos, cachecóis”. Ou seja, a imagem prevalecente da irmã, mesmo durante os anos de adoecimento, ainda era o da moça saudável que usava roupas elegantes.
Em alguns momentos a narradora/protagonista fala diretamente à irmã, numa espécie de carta que só pode ser respondida pelo passado. Há um momento em que a narradora diz que Rubi foi sua mãe. O movimento de cuidar e ser cuidada transitava: em várias fases da vida revezaram-se nesse papel. O fato de parecer que era Luísa quem mais cuidava de Rubi pode estar ligado ao fato de que é Luísa quem narra e, portanto, privilegia seu próprio papel na narração. É perceptível que enquanto a narradora crescia na literatura, a irmã se ressentia por não alcançar um lugar maior na pintura; de repente, não tinham mais o direito de beber a água do mesmo rio. Entre comemorações pelo sucesso alheio, os sentimentos de fracasso pessoal (ainda que fantasiosos) eram ativados em Rubi. E o fracasso de um irmão pode ativar a culpa pelo sucesso no outro.
O modo como Rubi acolhia Luísa se transforma com a sua doença pulmonar. Rubi passa a ter que usar tubos de oxigênio, limitando sua mobilidade, passando grandes períodos em hospitais. Com isso, Luísa nos relata como a enfermidade trouxe para a irmã desconfortos e dores físicas, além de dores existenciais e consequente mudança de humor. Pois se já é difícil fazer o luto por uma perda objetada no outro, mais terrível se torna estar no luto de sua própria perda, a perda de si mesmo, o ego que sempre pensamos indestrutível, na antecipação da própria morte. Tudo isso desperta raiva manifesta em Rubi, assim como o sentimento de impotência em Luísa, que não consegue com suas visitas, suas conversas, suas ofertas e sua saúde levar alegria ou sentido para a irmã. Rubi inicia o processo de verbalizar comparações de sua vida com as vidas de outras pessoas, que supõe terem sido mais aproveitadas que a própria.
Voltemos ao capítulo XLVIII, ao jovem Fabrício que faz a revelação que não podíamos prever em O coração pensa constantemente. Fabrício é o filho adotivo de Rubi (assim como Luísa já se sentiu em relação à irmã), cuja adoção causou, à época, grande ciúme em Luísa, pois a adoção é tida como um grande ato. Fica patente a rivalidade quando a narradora registra que dentre os filhos da irmã, o adotivo é o seu sobrinho com quem tem mais intimidade (ou seja, ela também é capaz de adotar). É interessantíssimo que justamente esse sobrinho disputado seja aquele que irá tentar atingir os sentimentos narcísicos de Luísa, de forma impiedosa, com uma informação que podia guardar para si – se é que o fato que ele traz se deu exatamente da forma como ele conta – já que Fabrício também está envolvido por uma história pessoal e por percepções que não conhecemos, também está se sentindo impotente diante da morte da mãe. Parece que o filho se sente imbuído de ressentimentos que toma como herança. Parece um misterioso acerto de contas.
O coração pensa constantemente é um romance sensível, bonito, complexo, simples, que utiliza a palavra para fazer um balanço diante da morte de um ser amado. Não há esperanças teológicas, metafísicas, crenças além-túmulo, fugas infantis. Há o vivido-revivido, a imortalidade do registro, a homenagem do amor dito e redito. Também não há a ingenuidade e a hipocrisia do senso-comum, que negam que o coração possa pensar de modo “negativo”. O coração é o primogênito de nossos órgãos, primeiro a se formar no útero e munido de sua própria rede de milhares de neurônios. O coração pensa, constantemente. Pela janela, no auge da doença, depois de tossir muito, Rubi olha e pronuncia sobre a vida: “Então era isso? Só isso?”
Ao fim do balanço, ainda que as relações fraternais variem caso a caso, Rosângela Vieira Rocha/Luísa conclui, a partir de sua experiência, que se tudo está compreendido, tudo está perdoado: “Só os que têm irmãs podem entender a essência, o núcleo, a delicadeza e a beleza desse vínculo. Que não é imune a conflitos nem a rivalidades, mas consegue sair incólume das desavenças, por ser feito de matéria incorruptível e perene.” Dessa forma, está enviando uma carta para Rubi, para sua memória. Uma carta que reafirma a amizade e que transforma a visita do sobrinho em apenas mais uma faceta do amor a ser compreendida.
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O coração pensa constantemente
Rosângela Vieira Rocha
Romance
Ed. Arribaçã
2020
(Adriane Garcia é poeta, natural de Minas Gerais. A resenha acima foi publicada em seu blogue: https://adrianegarcialiteratura.blogspot.com/2021/03/o-coracao-pensa-constantemente-de.html?m=1&fbclid=IwAR0FGutUqEBGqSUsTpXSiz9T-hKCAXhZDgm-mfr7p1P9tTHFf9cHZW7hpOQ)