Se o poema é triste, tal circunstância não quer dizer que o autor também o seja. O eu-lírico pode até ter escrito o poema movido pela mais profunda tristeza, mas isso não quer dizer necessariamente que o autor seja um triste em regime de tempo integral e dedicação exclusiva. Por essas e outras é que alguns leitores de Augusto dos Anjos tendem a misturar alhos com bugalhos. Ou seja, julgam o autor, o homem Augusto dos Anjos, tão ou mais triste quanto os seus poemas, sem saber dos versos humorísticos que ele publicava nos jornaizinhos que circulavam durante os festejos de Nossa Senhora das Neves, padroeira da cidade de João Pessoa, anteriormente denominada Parahyba do Norte.
Alguns versos do poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa ortônimo, ele-mesmo, publicado no livro “Cancioneiro”, demonstram o quanto o eu-lírico converte a dor verdadeira numa dor fingida, dissimulada, através da “mentira”, da “invenção da verdade”: “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente”*.
Por outro lado, alguns se inclinam a considerarem como frutos de uma mente psicótica os contos de Edgard Allan Poe. Certo, a maioria dos biógrafos do autor norte-americano o têm como um homem fronteiriço, que sempre transitou no limiar entre a loucura e a lucidez; mas lucidez plena, diria eu, pois apesar de doente, de enfermo, o poeta e o ficcionista possuíam uma saúde de ferro, o último, inclusive, capaz de sistematizar uma teoria a respeito do conto. E não só isso. Também inovou em criar um detetive, C. Auguste Dupin, cujos crimes solucionava sem o emprego da violência, da força física, mas utilizando a inteligência, os processos dedutivos e indutivos, como o fez, posteriormente, Hercule Poirot, personagem de Agatha Christie fortemente influenciada por Dupin.
Conforme alguns estudiosos da obra de Poe, o ensaio metalinguístico “Filosofia da composição”, de sua autoria, e no qual ele explicita a exegese do poema “O Corvo”, não passa de um blefe digno do mais exímio jogador de pôquer. No caso, porém, blefe de um artista genial que não só joga o jogo da literatura como infringe as regras da literatura para o bem da própria literatura. Aliás, referindo-se ao artifício de Poe, T. S. Eliot foi incisivo: “É difícil ler o ensaio sem refletir se Poe realmente elabora o poema com esse cálculo: o resultado dificilmente dá crédito ao método”.
Nesse ponto, só resta dar prazo aos céus ao fato de o escritor ser uma testemunha sem a necessidade de espalmar a mão sobre a bíblia e jurar contritamente em só dizer a verdade, nada mais além da verdade, pois, tivesse que jurar a respeito da veracidade de tudo o que escreve, a maioria quase absoluta dos escritores seria condenada por perjúrio ou falso testemunho.
“O Feudo do morto”, de Elmano Menezes, recentemente publicado pela Arribaçã, é um livro de um autor maduro e de um poeta amadurecido. Quero dizer, não é um livro de estreante, de quem se inicia nas lides literárias, mas de um poeta cuja estreia tardia contribuiu para que ele melhor terçasse e esgrimisse os seus instrumentos de trabalho. E para me ensejar a oportunidade de dizer, como eu o fazia até tempos atrás – sempre em tom de galhofa, de brincadeira –, que ele, Elmano Menezes, era um autor cujo temperamento dispersivo e alheio com relação ao que escrevia o situava no rol dos poetas “encobertos pelo manto da vocação póstuma”. Felizmente, porém, deixou de sê-lo com a publicação desse livro, cujos poemas sobre a morte ressumam, porejam vida, saúde integral e plena, combustíveis necessários para abastecer e impulsionar o motor da alegria de criar nem que seja a partir da “iniludível”, da “indesejada das gentes”.
(*) Sérgio de Castro Pinto é doutor em literatura, professor e poeta, membro da APL.