Por Fábio Daflon
A poesia pura surgiu entre 1918 e 1939, seu estilo dentro da poesia era o de impedir o decadentismo ou o descuido na expressividade estética, tal objetivo visava contraposição ao romantismo, encontrar a verdadeira natureza das palavras, deixando de lado o uso da fala. A origem da poesia pura está relacionada à arte pura ou à liberdade da arte. Seu início está vinculado ao escritor americano Edgar Allan Poe e a seu ensaio “O princípio poético”, esse ensaio foi escrito em linguagem simples, a fim de mostrar exemplos do que era a poesia para ele.
O livro “A arte do zero”, de Jorge Elias Neto (Ed. Arribaçã, 2021), se encaixa como luva no conceito mais autêntico do que é a poesia pura. Sem tergiversar, entretanto, precisamos falar um pouco, antes de analisar alguns poemas do livro, sobre a poesia que busca a pureza, citamos, por exemplo, a poesia de Miguel de Unamuno, escritor de poesia cristã, o que fez que fosse acolhido pelos franquistas e seus apoiadores antes e durante a guerra civil espanhola, porque a ambição da pureza, espelhada na excelente poesia de Unamuno, mostrou-nos que nem sempre o que provoca o sentimento de pureza nos homens é bom, pois é em nome dela, a pureza, que, falsamente, o homem se sente na condição de querer eliminar o que é impuro, o que faz haver atrocidades, guerras, preconceitos, falsos moralismos e outras maleitas.
Então, é necessário estabelecer a diferença entre a poesia pura e a poesia da pureza, porque é do homem a sina de tentar a semelhança com deus, e escrevo deus em letra minúscula como o faz a poeta cristã Mariana Ianelli, um deus humilde, humano, e não o Deus absoluto plantado como erva daninha em muitos corações incautos ou perversos.
E não há nada mais puro que o Zero, metáfora do nada – página em branco –, no livro em tela. Vemos isso desde o primeiro poema, ou antes dele, na capa onde o Zero assume a forma de ovo para abrigar dentro de si o título do livro “A arte do Zero”, como se as letras que compõem o título fossem, cada uma, uma semente. E o primeiro poema do livro tem o título “Início”. O vejamos:
O Zero já inscrito
na imensidão,
boca aberta
aguardando o verbo
——– trocou os dentes.
Que interessante subjetividade de metáfora é a da troca de dentes de leite por dentes definitivos, com várias sonoridades linguodentais, essenciais para a poesia pura, para o raciocínio capaz de provocar o sentimento, a mobilidade da vida, num pequeno poema. Sendo característica da poesia pura a busca das palavras, nos processos de desenvolvimento. O poema nos evoca a falar e falamos do poema, nessa experiência comum aos seres humanos.
No segundo poema, sob o título “De onde se parte”, nos quatro primeiros versos, o poeta nos fala do sumo:
Eis o sumo do Zero
– o nada –
que é tanto
desespero.
O Zero, obviamente, também possui conotações ruins, como a da nota zero, como o não valer nada, ser um zero à esquerda, etecetera. E a menção ao desespero é a da reação a essa invalidez. Vejamos o restante do poema:
a embriaguez
que te escapa
ao buscar um deus.
O que seria a embriaguez senão a sensação da busca da pureza que não cabe na poesia pura? O que é a embriaguez senão a incapacidade de não enxergar nada, de alucinar as coisas, de ter delírios místicos, e mais o que couber do lado de fora da poesia pura.
A tais questões o poeta responde no primeiro verso do poema “A parte que te cabe”:
Estou sentado à direita
do Deus Pai –
sou o absoluto nada
Os três últimos versos do poema são os mais pungentes de todo o livro;
na cova
– a casca –
de um símbolo partido.
Numa alusão às morte e ressureição do Cristo, e, que triste, a da perda do sentido da sua mensagem, numa crítica a um tempo em que se usa tanto o nome de Deus em vão. Tempo em que há a necessidade de fazer renascer (ressuscitar) a palavra desde o Zero, ou Ovo. Sinto estarmos começando a conhecer o segredo da viagem pelo livro “A arte do Zero”. O poema “Os fantasmas do Zero” é maravilhoso:
Os fantasmas
heróis
são órfãos
desperdiçaram o sangue
e a consciência
no trilho definitivo
da cova ao útero.
Os versos trazem em seu bojo uma crítica ácida aos heróis épicos, aos que arrotam fortaleza, se fantasiam de armas invencíveis, arrastam multidões, provocam paixões incoercíveis. Nosso tempo precisa muito mais de heróis laborativos do que epicianos, recordemos o livro “O trabalho e os dias”, de Hesíodo, não esqueçamos Homero, o planeta vive uma fase de antropoceno, na qual há necessidade de voltar à natureza e não de bravatas, geopolíticas militarizadas, guerras, intempéries climáticas resultantes das provocações destrutivas em relação à natureza. O trilho definitivo da cova ao útero não é mais o do útero à cova, cova-casca, ovo, zero, túmulo de um Cristo que não vai ressuscitar se voltar ao útero. Mas que trágico poema sobre a autodestruição humana. O útero simbolizando refúgio é a inversão do parto, da possibilidade de nascer, de trocar os dentes, de falar.
Da mesma forma que Edgar Allan Poe, o autor nos causa angústia. Leiamos o poema “Buraco negro”:
A fome é tua
Eu
– só abro minha boca
sugo teu corpo
cuspo o sumo
buraco fundo
com teu sonho
e pele
em órbita
na esfera do túmulo.
Confesso que na primeira leitura do livro “A arte do Zero” senti apenas a poesia pura, foi uma leitura suave, pensar e sentir os poemas um a um, zero a zero, é uma experiência diferente, a carga poética, a dramaticidade de cada linha passa a ser sentida. Vejam os versos do meio do poema “Buraco negro”:
sugo teu corpo
cuspo teu sumo
Sugar um corpo é algo vampiresco, utilitário, é uma fome sexual, utilitária, é o prazer sem satisfação, sem relacionamento com nenhum âmago (sumo), sem provar qualquer essência do outro; sugo teu corpo, diz o poeta, aquele que é zero, aquele que é nada, o buraco negro que apenas come, como nos ensina a astrofísica, repito o dito: sugo o teu corpo. Ah, que eu lírico absolutamente nada! Falso eu lírico, mais zero à esquerda ainda, boca, fome, vácuo sem vazio capaz de ser preenchido. Como assusta.
O livro “A arte do Zero” é extraordinário.
Há livros que precisamos ler três vezes ou mais, e reler depois de um ano, de dois, a partir de então, eventualmente. Vivemos num tempo de machismos exacerbado, misoginias, preconceitos, falsos moralismos e comportamentos perversos ultraliberais, um tempo de excessos dos extremos, o poema “A distopia do Zero” trata desse problema complexo.
O poema
– código binário –
no diagrama deixado
preso ao tudo de ensaio
do embrião congelado.
Combinação espartana
– Zero empalado
pelo UM fálico.
O código binário é o das duas correntes de genes do DNA, todos os genes conhecidos pelos geneticistas e médicos engajados nas novas tecnologias de reprodução, a combinação espartana é uma referência a eugenia, a empalação é a utilização de instrumentos capazes de fazer combinações genéticas experimentais para “melhorar a raça”, Zero empalado pelo UM fálico. O poema é uma crítica feroz contra a onipotência humana, seja ela fruto da “fé”, da ignorância ou da ciência. Faz também crítica a sociedade falocrática, tem um tom feminista, e isso é bom.
Termino com uma referência ao poema “Claustro” (Pág,46), cujos versos são:
O indicador
voltado para deus
– meu vazio particular
despido de soberba
e culpa.
Mas para que analisar o poema “Claustro”? Os versos já dizem tudo sobre o verdadeiro Eu lírico do poeta.
▪ Sobre o autor:
Fábio Daflon é médico, membro titular da Academia Brasileira de Médicos Escritores e da Academia de Letras de Vila Velha. É autor dos livros de poesia: Mar ignóbil, Mar sumidouro, Vagalume-Farol, Mar raso, Sovacos: poesia sob os braços, Um sol para Valentine e Canto gordo; em prosa publicou os romances Vento Passado – memórias do recruta 271 e Estrela miúda – breve romance infinito –; é autor da resenha histórica sob a denominação: Título Provisório – movimento estudantil na Faculdade de Ciências Médicas da UERJ, 1964 a 1985 e proêmios de 1935 a 1964; publicou o ensaio crítico O limite é o cosmo – a poesia de Marly de Oliveira –. Capitão de mar e guerra reformado por idade da Marinha do Brasil e aposentado pela Fundação Nacional de Saúde, hoje se dedica apenas ao ofício de escritor.