Por Mara Magaña
Filósofa, teóloga, jornalista, bacharela em Direito, poeta, cronista… Quantas mulheres e quantos mundos cabem em Ivy Menon?
A paranaense Ivy Menon teve uma trajetória inusitada. Da miséria da infância vivida no interior do Paraná com os irmãos e irmãs, quando um lambari pescado no rio próximo ao casebre onde moravam representava um banquete para a família, ao voo livre até a universidade, com o primeiro diploma de bacharela em Direito embaixo do braço, muita pedra rolou. Acompanhar a saga dessa mulher, desde antes de saber falar direito, mas já tendo função na casa – “Aprendi cedo a ajudar na lida. Comecei a balançar o berço para a irmã dormir, nem dois anos tinha” –, nos faz estourar sem anestesia a bolha em que nos encontramos. Autobiografias podem mostrar uma face um tanto quanto narcisista. Não é o caso deste livro. Ivy transita com desenvoltura de grandes mestres da palavra, aliás, seu caso, ao contar uma história de devastação. Os subempregos do pai, as doenças, a falta de comida, as várias mudanças, a quirera como única refeição por longo tempo, porém, não tiravam a alegria da trupe de crianças que brincavam com pedras, gravetos, nadavam nos rios e lagos de água gelada, trabalhavam, trabalhavam e trabalhavam, até as mãos e os pés sangrarem. Mas a fome era real, muito real: “No fogão de lata no chão, a mãe cozinhava quirera de milho, que se tornou nosso principal alimento por meses. Plantamos arroz na beira do rio, perto de onde pescávamos lambaris e tomávamos banho. A roupa molhada, pendurada em um galho para secar. Nossa fome voltou com tudo”.
LITERATURA DE ALTA QUALIDADE
Livros que contam histórias sofridas, tristes, verdadeiras não são novidade. Esse não é o ponto. “Asas de terra e sangue” (Arribaçã Editora) difere e sobressai entre os demais pela qualidade da literatura de sua autora. Dona de linguagem própria, cinematográfica, temos em Ivy Menon um nome a ser lembrado. Sua escrita flui, nos faz embarcar nas guerras de mamona dentro do mato, com ela e seus irmãos. De nos enternecer ao vê-la, com menos de onze anos, virar a dona da casa, graças a uma gravidez de risco da mãe, à espera do oitavo filho. “Depois do café, lenha cortada no machado, debaixo do fogão, ia lavar as roupas no riacho. A mãe me ensinou a tirar manchas de óleo diesel das calças de brim-cáqui do pai. Deviam estar limpas, como se não fossem da roça, do domingo da missa. Minhas mãos se alargavam. Firmavam-se sobre as pedras da correnteza a esfregar obediência e beleza”. O que atrai na literatura de Menon, para lá de análises acadêmicas, é o tom coloquial, rasgante, soberbo das páginas do livro. Ela sabe, por meio de sua narrativa, nos conduzir com habilidade que só se encontra em grandes escritoras, como Lygia Fagundes Teles, MARIA VALÉRIA REZENDE, HILDA HILST, CONCEIÇÃO EVARISTO, MARIA CAROLINA DE JESUS e outras do mesmo calibre. Citam-se aqui apenas mulheres, porque a prosa de Ivy é dessa tessitura das lavadeiras, das camponesas que preparam a terra. Antes, sabem de seus segredos, suas manhas, conhecem a gênese das plantas, banham-se em riachos com plácida nudez, só possível a anjos e bichos. E escritoras e poetas, como ela.
PÉS DESCALÇOS, ODE AO AMOR
Faltava tudo na infância de Ivy Menon, mas não o amor. A presença do pai nas páginas do livro é quase onipresente. “Nosso pai era bom e forte, porém faltava-lhe juízo, todos diziam. O que não impedia de ser excelente para nós, os filhos. Seu colo sempre fora sinônimo de aconchego e segurança. Entretanto, não controlava a ira. Rapidamente entornava o caldo e litros de cachaça. Todos tínhamos medo dele, quando bebia”.
O pai era CONGREGADO MARIANO e Ivy esperava pela benção matinal sentada em uma de suas pernas, ouvindo suas orações espontâneas. Na época do catecismo, que ela fez em tempo recorde, sentia-se preparada. Um único porém: não tinha sapatos. Alguém lhe deu um par de chinelos. O pai lhe comprara um vestido tubinho, azul, não sabia onde conseguira o dinheiro, mas lembrou de si próprio: “Pobre papai. Naquele dia, por amor a mim, se fez dócil, cordeiro. Renunciou a todos os seus raios. E participou da celebração da missa, leve, com os pés no chão. Não houve quem lhe doasse par de chinelos. Ele não notou a falta. Estava exultante. (…) O pai chorou emocionado, descalço e feliz pela hóstia consagrada à boca da primogênita”.
AS MUITAS VIDAS
A autora lembra que todos a achavam inteligente. O pai sempre falava isso. Mas daí a chegar a uma universidade era considerado um pouco demais. Menon cita que, dos seus amigos dali, somente 2% saíram de lá, e menos ainda chegaram à faculdade. E frisa que, apesar da dor, cresceram. Mas não se vê em seu relato autopiedade, mágoa ou qualquer ranço sobre o que viveu. Antes, há quase uma exaltação à luta que ela e a família tiveram de travar para sobreviver. E, mais uma vez, a figura do pai é preponderante para ela: “Sou grata ao pai por ter- -me dito não: me obrigou a lutar pelo que queria”.
E Ivy queria mais: depois de muita preparação, assim como fazia com a terra para o plantio, conseguiu autorização paterna para ela e os irmãos irem estudar em outra cidade. Uma Kombi os levava até lá. Além do lufa-lufa diário, Ivy também desfila seus sonhos, como o de pertencer a alguém, fala do marido falecido ainda com as filhas pequenas, ela já jornalista, que morreu com um tiro de revólver, por causa de uma brincadeira. Declara a imensa paixão pelos netos, conta do tempo passado em Portugal e da grande paixão, o mato, para onde voltou. Tem até um escritório na árvore.
Em “Asas”… temos o domínio da escrita, a palavra que é amiga, o dom de contar uma história, de prender a quem lê da primeira à última linha, sem pestanejar. Ivy Menon nos faz acreditar que se trata de uma grande e velha amiga, a quem podemos sentar, tomar um vinho ou uma xícara de chá, e rirmos muito das lembranças dela e nossa. Sim, porque a essa altura, somos íntimas. Isso é literatura. É assim que escolhemos nossos livros de cabeceira.
REFERÊNCIAS
MARIA VALÉRIA REZENDE Escritora, educadora, tradutora, freira missionária e feminista. Antes de publicar literatura, escreveu livros de não ficção sobre história, religião e movimentos populares. Enquanto ficcionista, escreve romances, livros de contos e literatura infantojuvenil. Ganhou vários prêmios importantes, como o Jabuti e Casa das Américas.
HILDA DE ALMEIDA PRADO HILST (1930-2004) Mais conhecida como Hilda Hilst, foi poeta, ficcionista, cronista e dramaturga brasileira. É considerada pela crítica especializada como uma das maiores escritoras em língua portuguesa do século XX.
MARIA DA CONCEIÇÃO EVARISTO DE BRITO Linguista e escritora brasileira. Agora aposentada, teve uma prolífica carreira como pesquisadora-docente universitária. É uma das mais influentes literatas do movimento pós-modernista no Brasil, escrevendo nos gêneros da poesia, romance, conto e ensaio.
CAROLINA MARIA DE JESUS (1914-1977) Escritora, compositora e poeta brasileira, mais conhecida por seu livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, publicado em 1960. Carolina de Jesus foi uma das primeiras escritoras negras a ser reconhecida no Brasil e é considerada uma das mais importantes do País.
CONGREGADO MARIANO Pertencente à Congregação Mariana, que é uma associação pública de leigos católicos que acreditam seguir melhor o cristianismo através de uma vida consagrada à Mãe de Deus, a Virgem Maria. “Santidade e apostolado” são suas metas para uma transformação cristã da sociedade humana.
(Mara Magaña é poeta. O texto acima foi publicado na Revista Língua Portuguesa e Literatura número 90)