Por Ricardo Vieira Lima
Garatujas selvagens (Arribaçã Editora, 2021), nono livro de poemas de José Inácio Vieira de Melo, é o cume máximo, a síntese extraordinária de uma obra que, ao longo de mais de 20 anos, se impôs aos leitores de poesia, em razão de suas qualidades intrínsecas, as quais, sobretudo a partir deste novo volume de versos, alçam seu autor ao seleto grupo dos maiores poetas brasileiros contemporâneos.
Que não haja dúvidas: estamos diante de um poeta telúrico, sim; atávico, sim; visionário, sim; e de inconfundível voz própria. Pois, como bem diz a romancista Ana Miranda na contracapa do livro, José Inácio “cria a sua própria cartilha, em busca da fonte secreta”. Sabemos, no entanto, que, para se chegar a uma “fonte secreta”, i.e., não visível a olho nu e não disponível facilmente, é necessário percorrer, por vezes, um longo caminho. Nesse sentido, Vieira de Melo é um poeta andarilho, conforme ele mesmo admite no poema de linhagem concretista “Trilhas”, em que as palavras se movimentam, como se estivessem prestes a dançar: “somente/ perdido/ nos caminhos// o andarilho/ está/ em casa” (p. 48). Aliás, na obra anterior a Garatujas…, Entre a estrada e a estrela (2017), JIVM já abria o volume dizendo: “O mundo foi feito pra gente andar” (p. 17).
Com efeito, a poesia viageira de José Inácio Vieira de Melo está sempre em movimento, à cata de novidades. Dividido em não menos do que 10 partes ou seções, Garatujas selvagens personifica exemplarmente essa poética: “No claro ou no escuro/ procuro porque procuro/ sempre novos rumos.// Sem pensar futuros/ procuro porque me curo/ ao ultrapassar muros.” (“Procura”). O poema, composto por dois tercetos, com métricas que se alternam entre a redondilha menor e a maior, possui um ritmo intensamente musical e sonoro. Essa busca, esse desejo de movimento em direção à “cura” (“fonte secreta”?), prossegue em outro texto (todo ele escrito em redondilha maior) da segunda seção do livro – na qual há o predomínio da metalinguagem, assim como na primeira parte da obra –, intitulado “A procura” (p. 49): “O que procuro nem sei./ É meu olhar que se atira/ para mais alto que em cima,/ onde talvez nunca irei.// Está tudo tão disperso,/ mas em meio a tanto não/ às vezes encontro um pão/ bem recheado de versos”. Fome e poesia. Ou fome de poesia? Sede, talvez. Que o digam os últimos versos de “A procura”: “Ainda sinto muita sede,/ por isso que estou no fronte/ e ao atravessar a ponte/ acharei a fonte secreta:// (…) e em meu mundo tudo muda:/ mente em movimento eterno.” (p. 49). Metapoesia em movimento, sempre em busca da “fonte secreta” (quiçá a “cura” de todos os males do corpo e do espírito), em José Inácio a palavra poética é, pois, deslocamento, andança: “Cada palavra tem sua via./ É tudo imprevisto a cada linha.// Mesmo o dito e feito,/ quando ajuntado em palavras,/ pode aparecer de um outro jeito.// E quanto mais emaranhado o caminho,/ o viajor das palavras mais se aprofunda:// quer desenhar as formas ignaras/ e sentir o incenso do imenso obscuro.// A palavra é o de repente,/ é o desprevenido instante,/ e tudo se alinha no seu rompante.” (“Via das palavras”, p. 24). Nesse admirável poema, o eu lírico afirma que cada palavra possui a sua trajetória, plena de múltiplas significâncias, repentinas e irrepetíveis. E que o poeta em profundidade é um “viajor das palavras”, um peregrino das letras, aquele que melhor andará e cantará, quanto mais for “emaranhado o caminho”.
De fato, a música permeia fortemente as garatujas deste novo trabalho de José Inácio. Ao ponto de, em “Ars poetica”, o autor definir sua arte como uma mistura entre a sua vida, a melodia e a palavra: “Tudo vibra quando escrevo meus versos./ As minhas existências pulsam em cada poema./ Essa música que chega não sei de que paragens/ só busca encontrar as águas da linguagem” (p. 30). Linguagem e música. Eis o “Habitat” de JIVM: “A minha voz é o cântaro/ que enche as fronteiras/ e ecoa nos píncaros da lua.// (…) // Sou um estrangeiro sem bússola,/ mas a cada movimento que faço/ estou sempre a ampliar espaços.// Eu sou minha casa/ e tenho asas.” (p. 35). Poesia que soa, poesia que voa. Já “Primavera na caatinga” foi composto a partir da belíssima e conhecida canção “Primavera nos dentes” (composta por João Ricardo e João Apolinário), gravada pela banda Secos & Molhados em seu disco de estreia, em 1973. Em outro texto poético da obra, intitulado “Cartografia do medo”, dividido em seis partes ou cantos, há um curioso diálogo com a música “Pequeno mapa do tempo”, de Belchior. Mais à frente, na nona parte do volume (“Autorretratos”), o título da canção “The Dark Side of the Moon”, composta e gravada pela banda britânica de rock Pink Floyd (também no ano de 1973, no disco homônimo), se transforma em “The red side of the JIVM”, um soneto trissilábico. Não obstante, José Inácio Vieira de Melo sempre confere um toque pessoal, um gosto de sertão, na maior parte das vezes, aos seus poemas e aos diálogos com os escritos e os artistas de sua preferência.
E os diálogos prosseguem, sucedendo-se e formando uma espécie de mosaico de vozes, filtradas pela voz preponderante de José Inácio Vieira de Melo, como no caso do ótimo poema “Semeador”, que evoca Drummond, Jorge de Lima, Joaquim Cardozo, e se encerra à moda de JIVM: “E aí eu já arreei meu cavalo e já passei a perna,/e em meu peito já se instalou a maior alegria,/ pois por mais que haja dor e espinho,/ eu nasci para semear amor e poesia.” (p. 73). Na quinta seção de Garatujas…, “Retratos”, o processo de intertextualidade se intensifica. Mormente nessa parte, mas também no restante do livro, José Inácio expande o seu universo para as artes ibero-americanas, homenageando poetas, escritores e músicos, como Rómulo Bustos Aguirre, Humberto Ak’abal, Joaquín Rodrigo, Luís Serguilha e María Vázquez Valdez, incluindo vários brasileiros, a exemplo de Murilo Mendes, Graciliano Ramos, João Cabral, Carlos Pena Filho, Marcus Vinicius Quiroga e Helena Ortiz, entre outros. Afinal, o autor faz questão de nos lembrar que seus poemas são escritos “com sangue latino” (“Leitura”, p. 28).
Mas José Inácio Vieira de Melo é, acima de tudo, um poeta lírico. É nessa toada que o artista alagoano-baiano melhor se expressa. Desse modo, a quarta seção da obra, “Rota infinita”, composta por apenas sete poemas, é um dos pontos altos do volume. Um denso conjunto formado por sete peças de intensa carga lírica, presente em poemas libertários, como “Amor luminoso” e “Viver é sempre um renascer”. No primeiro, esse sentimento é retratado pelo poeta como a pedra de toque da sua própria existência, aquilo que o faz mover-se continuamente, sem limites e em várias direções: “O amor quando chega a gente o segue/ e vai à Terra do Nunca/ e se for preciso outros mundos/ a gente concebe.// A gente consegue transmudar tormento em contentamento/ porque só sentindo o amor/ a gente entende que pode ser livre/ ao amor obedecendo.// (…) // Sou meu senhor e habito o imenso pasmo/ das mais altas eras dos delírios absurdos.// (…) // Sou pequeno,/ mas o amor me eleva aos Andes,/ onde sou condor e Castro Alves.// É sempre o amor que me faz abrir as asas.” (p. 70). Quanto ao segundo poema, trata-se de um soneto de métrica variável, dividido em três tercetos, um dístico e um terceto final que encerra esse belíssimo texto de ares whitmanianos, único na obra, o qual consagra o amor livre e total, sem preconceitos.
“Instantâneos”, sexta parte de Garatujas…, reúne uma série de haicais resultante de um notável tour de force empreendido por José Inácio com o gênero nipônico. São 10 pares dessa forma poética, distribuídos por 10 páginas (sendo um par a cada página), em que um haicai dialoga com o seu par correspondente. A métrica é a clássica (5-7-5): “o poeta é dentro./ um templo dentro do tempo./ o templo do tempo”, o qual dialoga com: “o tempo é lá fora./ e bem nos dentros, um templo,/ um poeta aflora” (p. 97).
Buscando, enfim, um tom mais pessoal, o autor organizou as últimas quatro seções do livro, espelhando-as entre si. Destaco, nesse aspecto, “Panorâmica das mães” e “Afresco para Inácia”. Na primeira, Vieira de Melo homenageia as mães, em geral: “E as mães?/ Como dói vê-las velar o vão da tarde que some. // (…) // A mãe perpassa o pensamento do filho/ e chora e ora para que nenhuma morte o siga. // (…) // A mãe é uma fera que mostra os dentes do amor,/ tentando espantar o inevitável voo do ovo que gerou.” (p. 111/112). Em seguida, José Inácio homenageia sua própria mãe, Inácia Rodrigues de Santana, em celebração aos seus 70 anos recém-completados, nos quatro poemas que compõem um mural afetivo e afetuoso: “Passaram-se 70 anos, e Inácia continua viva e vivaz,/ continua a mais linda, cicatrizando e abrindo feridas.” (“Morta e viva”, p. 124).
Ao final de seu longo percurso, o poeta se despede de seus leitores, sabendo que, mais importante do que a meta a ser atingida, é o caminho a ser percorrido, ou seja, a própria caminhada em si. Só assim “a rota do ser” se completará, chegando a seu termo sem muitos transtornos: “Que a luz chegue em cada quarto,/ em cada recanto do teu ser.// Que tua vida seja grande./ E que na soma dos erros e acertos/ o sol continue a iluminar tua rota.// E quando chegar a hora de partir,/ parte. Mas parte contente,/ celebrando o mistério do porvir.” (“A rota do ser”, p. 155). Bem haja, poeta José Inácio Vieira de Melo. Bem haja.
(Ricardo Vieira Lima é poeta e crítico literário. O texto acima foi publicado no suplemento Correio das Artes, do jornal A União, de maio de 2022)