‘No cais em que espero’ – Félix Araújo Filho e a arte do haicai

Por José Mário da Silva

 

Félix Araújo Filho é uma figura exponencial da vida de Campina Grande. Filho do paradigmático Félix de Sousa Araújo, do lendário pai ele herdou numerosas e multiplicadas virtudes, sendo uma das mais explicitamente evidenciadas, o amor incondicional pela palavra, que, em suas hábeis mãos de esteta consagrado, é sempre alvo do mais esmerado e refinado trato, seja no texto que esculpe na face branca do papel, seja no que, candente e crispado pelo fogo da mais vívida retórica, explode, abrasadoradamente, nas tribunas do Júri Popular, nas quais Félix Araújo Filho cintila como advogado criminalista de elevado quilate.

No passado a arte tribunícia de Félix Araújo Filho também pontificava, em alto relevo, na seara da política, na qual ele atuou de modo qualificado, tanto no Poder Legislativo quanto no Executivo, sendo vereador competente e operoso prefeito da cidade de Campina Grande.

Com a emergência das poéticas emanadas dos vários modernismos que se espalharam pelo país, todas elas ancoradas no porto de uma vernaculidade visceralmente timbrada pelo selo do coloquialismo, a palavra da retórica foi sendo a pouco e pouco expurgada da república das letras, como se não passasse de uma expressão verbal vetusta e absolutamente anacrônica, incapaz de comunicar, o que quer que seja aos tempos do aqui e do agora, centrados num dizer simples, por vezes, telegráfico e minimalista. Em certo sentido, foi compreensível tal reação modernista contra a tonalidade solene de certo dizer retórico, mas, nas refregas do combate linguístico, entronizou-se o pecado da generalização conceitual; generalização que é sempre perigosa, dado que, ao fim e ao cabo, há retóricas e retóricas, desde as que, como o samba de uma nota só, imortalizado na inconfundível voz de João Gilberto, “falam, falam e não dizem nada”, as que, consorciando ritmo, imagem e conceito, conforme as preconizações teóricas de Ezra Pound, impõem-se como a ciência que reúne todas as formas sociais do dizer, de acordo com os postulados do pensador francês Roland Barthes.

Na expressão verbal posta em cena por Félix Araújo Filho, a retórica é emoção pensada e pensamento emocionado a serviço do bem dizer e do dizer bem. Mas, ao Félix Araújo Filho, tribuno magistral, que integra um vasto código onomástico ao qual pertencem vultos do porto de Félix de Sousa Araújo, Ronaldo Cunha Lima, Raymundo Asfora, Osmar de Aquino, Alcides Carneiro, Argemiro de Figueiredo, Vital do Rêgo, José Américo de Almeida, dentre outros a quem a Providência divina aquinhoou com o dom da palavra, acumplicia-se o Félix Araújo Filho, poeta, talhado para o ofício de, nas asas lépidas e libertárias da palavra, transfigurar as suas mais significativas experiências existenciais.

Poeta inspirado e inspirador, Félix Araújo Filho (Arribaçã Editora, 2022) estreia na cena literária campinense e paraibana com o livro “No cais em que espero”. Livro esse que é radicado, do ponto de vista da sua estruturação formal, na arquitetura composicional do haicai, espécie da lírica, de origem japonesa; e que encontrou em Matsuo Bashô, o seu cultor mais ilustre, intérprete fiel e criador original. Dir-se-ia ser Matsuo Bashô o representante de um discurso fundador, o da poética do haicai, poema formado por versos que apresentam cinco, sete e cinco sílabas poéticas, respectivamente. Segundo o professor e crítico literário Amador Ribeiro Neto: “No oriente o haicai versa sempre sobre uma estação do ano e tem um tom reflexivo. Normalmente o haicai dispensa o título. E não faz uso da rima. Tropicalizado, o haicai, na quase totalidade dos casos, faz uso da rima e dispensa a referência à natureza e à métrica”.

Na curta, bela e metalinguística crônica intitulada “O pavão”, de autoria do mestre Rubem Braga, está escrito que “Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade”. À luz das líricas ponderações de Rubem Braga podemos sinalizar que a glória do artista é dizer muito, dizendo pouco, ao exibir, a virtude da concisão, o poder da síntese, centradas na capacidade de ir ao âmago do que se quer dizer, que é a matéria seminal, portanto, do haicai, composição poética fundamentada numa espécie de captação do instante, do peculiar modo de percepção epifânica de um flagrante da realidade, por meio das quais a vida se ilumina e ilumina a quem se banha com o jorro de luz que se espraia das suas dimensões aparentemente mais intranscendentes.

No livro “No cais em que espero” tais realidades, eminentemente estéticas em sua ontologia íntima, prefiguram-se já a partir do título, signo antecipador de um estado de espírito próprio de quem se coloca nas variadas plataformas da vida, em permanente atitude de vigilância, diante dos diversificados sentidos e das mais variadas significações emanados do real, com o qual convivemos e no qual estamos inseridos. No livro “No cais em que espero” flagramos os mais diversos motivos e motivações: o amor, o erotismo, a solidão, a crítica política, a meditação existencial, a dicção metalinguística, os enamoramentos com a natureza, bem como com as admiráveis personagens que a habitam; tudo, dentre outros temários abordados, bem urdido e correlacionado por uma linguagem leve, lépida, livre, como o vento, e cativante como só a poesia convincente é capaz de estabelecer.

Os haicais elaborados pela cuidadosa pena de Félix Araújo Filho acolhem, em sintonia com as lições preconizadas por Ezra Pound para a compreensão do complexo signo poético, o ritmo, a imagem e a ideia, a exemplo do que se pode constatar no belo haicai a seguir transcrito: “Tomo duas pedras / para escrever e depois / folhear silêncios”, no qual o ato-processo da criação literária é cartografado em sua dureza e leveza, simultânea e dialeticamente. O bom investimento no estrato fônico da linguagem garante, do ponto de vista da fenomenologia da composição poética, tal ambivalência, o que, no final das contas, revela ser o autor em tela verdadeiramente vocacionado para a criação da fascinante e difícil arte da poesia, pois, como certa feita pontuou o poeta paraibano Lúcio Lins: “Poesia é ritmo de poucos”.

Com engenho e com arte, Félix Araújo Filho, em sua estreia literária, faz um gol de placa, no lúdico, mítico e mágico jogo da poesia.

 

(Artigo publicado no jornal A União, edição de 21 de julho de 2022)

 

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– O livro “No caís em que espero”, de Félix Araújo Filho, pode ser adquirido no site da Arribaçã no seguinte link: http://www.arribacaeditora.com.br/no-cais-em-que-espero/

– A obra pode ser adquirida, também, no formato digital, em e-book, no site da Amazon.

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