Gringo Carioca mostra a porta dos hiatos da linguagem

A poesia brasileira anda carecendo de vigor, seja poético ou estético, seja de mensagem, de atitude. De dar uma porrada na cara da poesia pseudo parnasiana dos dias atuais, com tudo certinho dentro das regras da modernidade, mas que na maioria das vezes não passa de cópia das cópias de João Cabral de Melo Neto ou tentativas de vanguardas que não existem mais. A poesia de Marco Gringo Carioca nos redime dessa apatia e desse fastio pelo vigor literário nos tempos atuais.

Em seu livro “Vozes & Visões”, Gringo Carioca traz de tudo um pouco. Uma espécie de caldeirão de mitos (evoé, Braulio Tavares!) e ritos. Uma poesia que tem conceito, tem ritmo, tem vigor, tem ironia, deboche, lirismo. Vejam que ele já começa o livro recorrendo a Deleuze para definir o que é voz, o que é visão. Mas não pense o leitor que esse é um artifício pedante, para provar algum conhecimento acima do normal. Não! Gringo pega Deleuze para mostrar como os “hiatos da linguagem” se abrem na poética do autor de “Vozes & Visões”. Um caleidoscópio de sensações verbais ou visuais que instigam o leitor!

O livro é dividido em cinco partes. A primeira delas fala de “emoções”. Difícil não lembrar de “Monólogo de uma sombra”, de Augusto dos Anjos, ao ler “sombra clara”, de Gringo Carioca. Naquele, o eu-lírico fala ser uma sombra que vem de outras eras. Neste, que não é daqui, mas de outro lugar, com a influência, em um como em outro, do samsara budista. Em “Teresa” há uma clara intertextualidade com o poema de Manuel Bandeira, sendo que o arremate de Gringo é profano em comparação com a reverência divina do poeta pernambucano. Mais adiante, o poeta conjuga o verbo “esper(anç)ar”, num jogo de palavras entre esperar e esperança: quem espera sempre alcança? O jogo de signos e imagens em “rosa roseada” é delicado e dolorido, ao ir da sedução à dor da rosa. Em outros poemas da mesma seção, Gringo traz a voz das emoções que pulsam das ruas, a pergunta política sobre quem soltou a mão de alguém, a neofala surgida nos aplicativos de redes sociais, como kdvc, e a busca do lirismo no tocante “samba da renovação”.

O segundo momento do livro é o lugar de “avaliações”. Que avaliações seriam essas? Cheias de poses, de sentenças? Na poesia de Gringo Carioca, não! São avaliações que passam pela crença de não crer em nada além de tudo, num vertiginoso oxímoro que desmantela o juízo do leitor. Avaliações que criam os dez desmandamentos do nadaísmo, que não é outra coisa senão ser cético com tudo e com todos, e a constatação que se não fosse redondo o mundo seria bem chato. Mas há espaços para um lirismo pungente, como em “isolamento”:

 

a chuva da janela –

o tempo se adequa

ao momento…

 

A poesia vive de embates, principalmente com a linguagem. E nesses embates, o eu-lírico de “Vozes & Visões” diz que perde quando vence. Que resumo perfeito para a realidade que vivemos hoje! Não estamos perdendo diariamente, mesmo quando achamos que vencemos?

O terceiro momento do livro privilegia “opiniões”. Não as do autor, claro. Não esqueçamos que estamos falando de um livro de poesias e o poeta há de ser sempre o fingidor que Pessoa popularizou, mas de quem Aristóteles já falava há séculos e séculos. Daí o longo poema “está tudo errado”, que pode ser lido como se fora um rap. Ou um repente nordestino? Em outro poema surpreende, ao indagar se “há pós-vida diante da pós-morte”. Em “à venda”, alonga os versos em petardos poéticos cheios de ironias. Ironias que se repetem em “idiotologia”:

 

olho para a direita,

olho para a esquerda,

vejo a mesma merda!

 

Ou em “cidadão do mal”:

 

cala a boca, seu boçal,

nem vem que não tem!

o tal cidadão do bem,

virou sinônimo do mal…

 

Dois poemas que dialogam com um Brasil que não reconhecemos mais.

Vem com “percepções” o quarto momento desta obra. E aqui atentemos para a dialética interessante de “(sem) parar”, que lembra o jovem rebelde que guardamos no bolso do paletó. Neste capítulo, encontramos o poeta drummondiano, o poema “destino”, com referência ao caminho do meio budista, o sarcasmo shakespeareano de “ora bolhas”, o alerta para se aproveitar o agora antes que venha o depois e as indagações filosóficas de “contudo”:

 

por enquanto,

quando tudo o mais é tanto,

eu – antes de mais nada, tonto,

diante de todo o demais –

me pergunto quanto cabe tudo

se, no entanto, e sobretudo,

sempre acaba em nada demais?

 

O quinto momento do livro expõe as “compreensões”, com um “scenarium” que lembra o melhor do ritmo de Caetano Veloso. Aqui, o eu-lírico tenta compreender sua própria sina poética, sua própria essência. Leiam “como nasce um poema”:

 

da palavra expressa

surge um emblema –

a cada cinco letras

nasce um poema.

 

Confira a homenagem de “velho haicai”:

 

velho haicai:

uma rã solta

o som de Bashôôô…

 

Marco Gringo Carioca é um poeta que ataca nossa cobardia, nossos medos, nossas indiferenças. Sobretudo, é um poeta que não teme espelhagens, para usar um termo usado num de seus poemas. Isso mesmo! Um poeta que não foge da antropofagia poética, não se esconde por trás de suas influências literárias. Pelo contrário. Dá um passo adiante e mostra “a chave da felicidade”:

 

um sábio certa vez me indagou:

“você sabe a chave da felicidade?”

eu sendo o bobo que era,

mostrei-lhe a porta…

 

Linaldo Guedes

Cajazeiras, sertão da Paraíba, setembro de 2022

 

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O livro “Vozes & Visões”, de Gringo Carioca, pode ser adquirido clicando AQUI

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