Por Johniere Alves Ribeiro
Um livro sem cinderelismos.
Não sou fã de alguns “ismos” que andam por aí nos entremeios da literatura. Todavia, inicio este meu texto “mandando essa letra”, como uma forma muito mais de sentir do que racionalizar minha leitura sobre “Ecos do céu da boca” (Arribaçã Editora, 2021), livro de poemas de Clariça Ribeiro carne viva vul)cânica, pronta para ofertar sementes de rebeldia. Por isso, reforço: neste livro há ausência de cinderelismo.
O título do livro da poeta parece despretensioso. De cara, um crítico tradicional de literatura diria que o mesmo toma por base a ideia de uma metáfora desgastada. Contudo, leitora/r se chegares até o final desse texto, escrito sem muita pretensão, verás que nas relações entre o amor, a sociedade, o erotismo, o sexo e as quatro pontas de um lençol tudo é fonte de pulsão, de criação, nunca uma metáfora gasta.
Nessa figuração composta por afetos tudo torna-se novo, potente. Energia do conatus. Trago esse termo aqui nos sentidos usados por: Spinosa, Schopenhauer, Nietzsche, Bergson e Deleuze que assim seja, tudo hibridizado, rizomatizado em agenciamentos otimizantes para leitura dessa obra de Clariça.
A titulação da obra é insinuante. Brinca com a possibilidade de trocadilho entre o “ecos” e “eros”. Ao mergulhar na leitura dos poemas nos deparamos com a força do eros. Confesso, que o início do livro não entrega aquilo que ele virá a ser, postando quem lê em um devir. A leitura dos poemas iniciais é uma espécie de acendimento de com coquetel molotov, só que a o acender a/o acendedora/o está a favor do vento e esse sempre apaga a expectativa do acender. Contudo, a partir da segunda parte, ufa, o molotov é lançado e incendeia tudo.
Mas quais seriam as “lugaridades” que os tais ecos podem-se ouvir? Quais dicções guturais de um céu ignoto e sem torres de marfim fazem emergir o idioma cifrado de eros? Tais “eros/ecos” do céu de uma boca seriam o velho diálogo de Adão e Eva, incitado por Machado de Assis em “ Memórias Póstumas de Brás Cubas? Não sei.
Leia o livro e encontre as respostas. Ou não!
“ Ecos do céu da boca” é dividido em 5 capítulos, a saber: “Do genuíno lançamento de si”; “Do depara-se com o obstáculo”; “Da reflexão experimentada”; “Do lapso de tempo necessário” e “ Do regresso a matriz”. Essa divisão imprime ao livro um ritmo muito próprio. Uma dinâmica interessante, otimiza o frenesi que os temas dos poemas necessitam. É o que se pode ler em “Espelho” e “Eu lírico”: “ Há dias em que reluto / em ver minha imagem / refletida no espelho” – versos que lembram Cecília Meireles; “O eu lírico é a minha proteção / Nada proíbe / Tudo permite / Outras vidas, outros desejos / Outras experiências, outro amores”. Observe leitora/r que a escrita de Clariça se dissolve no poema como quem desenha rotas de fugas, como quem busca ar em zonas entrópicas para dar um respiro.
E ela escreve como se lançar às pontas dos dedos que são flamas, chamas em carne vivíssima que simplesmente toca o papel, toca a pele, toca e toca sem pudor. São escritos/dedos/poemáticos/erotógenos: “Ignora censura e deixa confusos / os inquisidores / Aaah! A confusão dos censores é meu gozo!”; “fazer-se gozável ao menos / Por uma noite/ sem juízes e cautelas/ […] selei meu sexo ao seu / E que mais do que permiti/ Eu desejei e pedi”. Nesses versos, a carne não se torna pó, a carne se torna ainda mais carne junto a outra carne. E em suas fricções refaz em carne. Amor em osso puro. Tecido na pedra/corpo/pedra, implicando que não há metafísicas para o amor. Pois, “ o ardor a evadir-me em fissura / É fogueira por ti mesma ateada … “Maliciosa ou terna?”.
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“Maliciosa ou terna” Clariça Ribeiro estrutura seus versos em uma base linguística muito conectada aos vocábulos cotidianescos, faz isso de propósito. E deles sabe fluir força poética, mesmo sendo um meio termo entre o campo amplificado da metáfora e o terreno denotativo, tido como restrito, mas imbuído de energia semântica, quando aplicado ao contexto do poema contemporâneo.
A autora prima por uma frasística sem floreios. Como se o poema insistisse por um movimento no fora da literatura. Visto que são versos de comunicação rápida com quem lê, rompendo com a ideia de que a linguagem do poema se constitui como opaca: Lido muito bem com minhas estrias/ Não tenho problemas em notar inchaços / Porque há dias em que / Respeitar, Compreender e aceitar / o próprio o corpo”. É visível o tom prosaico. E nos apresenta linhas conceituais que vão de encontro à ditadura da beleza imposta aos corpos na atualidade, principalmente ao corpo da mulher. Por isso, ecoa na voz do eu poemático: “Não me incomodo com dobrinhas / Pouco me importam as roupas […]”. Mas desse mesmo corpo, a poeta evoca “mais excitantes insinuações”, “ é que seu tesão é, antes de tudo, antifacista.[…] Repudia a política de ódio (Buceta Antifa, p.31)”. Também fica claro versos que procuram combater o sistema patriarcal estruturado em nossa sociedade.
A poeta expõe o desejo, o prazer tal como um móbile cortante. No qual o femino se estabelece em conluio com amor fati. Assim, a femme faltale é a que é a própria adaga de si, do falo e do labirinto túbico do corpo ela vislumbra no estio do salto animal, orquestrado por ela mesma. Daí, o eu do poema cobrar “devolve meu tesão, lua!; vem aqui / me ensinar a acessar minha libido / sem depender de ti” ( À lua, p.50). Dito isso, o feminino não só é receptáculo: é mandíbula, daí talvez, a referência à boca presente no título da obra.
“Ecos do céu da boca” é um grito. Grito forjado na antipatriarcalidade. É uma oferenda as flexibilidades, outros contornos para força de antigo calar, disfarçado de pudico, de silenciamento da mulher. Os versos do livro são uma tentativa de apagamento das consoantes, das vogais que formaram o machismo do nosso processo civilizador. Clariça Ribeiro retém no botão entreaberto da blusa as vozes de muitas outras. E é nesse botão entreaberto, que sinto a polifonia, a instalação de dicções que verbalizam: “me desproteja de mim”, “sou livre”, “sou mulher”, “o mundo surge de mim”. É o que se lê em: “Céu da boca”, “Doula”, “Gravidez aos 10 mata”, “ Amor alma faminta”, “Casamento”, “Escolha”.
Amor. Sensualidade. Sexo. Erotismo. Prazer. São unguentos na língua do ecos da boca e que exorcizam platonismos. Negando santos de gesso na relação amorosa. Estabelecendo ao corpo tudo aquilo que é potência, como quem procura um lugar para guardar tupperware’s, que sempre necessita de mais espaço no móvel da cozinha. E é preciso paciência no objetivo de tudo alocar. Se não a tiver, que tudo fique por fazer e por se re)fazer num ad infinitum. Porque o que importa de verdade, no contexto dos poemas escritos por Clariça Ribeiro, é potência do ato de encontrar o lugar, pois é ela que imprime a sinergia à “cupidez ( epithymia), coragem (thymos) e razão (logos)” – para usarmos expressões de Byung-Chul Han; que a nosso ver necessita estar tudo hibridizado na experienciação do prazer, pois:
“Eros possibilita uma experiência do outro em alteridade, que o resgata do seu inferno narcisista […] o amor é tomado por um tornar-se fraco tudo próprio, que vem acompanhado ao mesmo tempo por sentimento de fortaleza. Mas esse sentimento não é o desempenho próprio de si mesmo, mas o dom do outro” (Byung-Chul Han, 2017).
Por essas e por outras que o DE OLHO DA ESTANTE indica “Ecos do céu da boca” de Clariça Ribeiro.
* Johniere Alves Ribeiro é professor-doutor e resenhista parceiro da Arribaçã. O texto acima foi publicado na seção “DE OLHO NA ESTANTE”, em seu perfil no instagram: @johniere81
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O livro “Ecos do Cé da Boca”, de Clariça Ribeiro, pode ser adquirido AQUI