DE OLHO NA ESTANTE: Ventos que teimam os versos, novembros que se despedaçam: tudo vermelho como o vento

Por Johniere Alves Ribeiro

 

“Vermelho como vento”, Arribaçã (2022), livro dividido em 10 capítulos e que compila poemas de  Conceição de Maria Machado (Nsema Dya Nzuulu) nos chamou atenção logo que recebemos, primeiro pela capa e sua referência direta a dois elementos simbólicos de algumas religiões de matizes africanas. Além disso, o título é composto por elementos fortemente poéticos.

Embutido nele uma potência imagética. Já que temos um o vento, um elemento que move massas de ar de áreas com pressões mais elevadas em direção àquelas mais baixas, variando segundo a altitude bem como a topografia do lugar; receber uma cor o “vermelho”. Cor que lhe oferta uma espécie de “roupa”, rompendo uma concepção alocada pelo senso comum no que tange ao fenômeno vento. E isso soma muito ao arcabouço estrutural do livro.

Sendo assim, a capa, sua palheta de cores, o título, o primeiro verso do livro e o seu tema central tornam-se um caleidoscópio  de ousadia: 1) da autora; 2) bem como da editora que apostou na produção da obra.

Já disse em outros textos que leio mais pela intuição, pelo afeto do pela razão. Não sei se isso é possível, mas pelo menos eu tento. Desse modo, confesso, deixo-me que as afecções e atravessamentos me cheguem com os caminhos abertos. Nunca sei o que vou escrever. É o livro que me guia. Faço isso porque creio que as semiologias necessitam de liberdade, necessitam que os fluxos sigam nos conflitos do leitor com a obra, sem universalismos para os sentidos e possíveis interpretações. E “Vermelho como o vento” nos oferece esses aspectos. “o teu sol me queima e meu verso teima / em cantar teu nome/ teu nome sem fim / em mim”.

Dessa feita, não só o “verso teima”, mas tudo. O livro é uma grande antologia de teimosias. E seu tom atrevido, treloso. “Só quem reza/ em total entrega da alma / sabe desse ascender e tombar / das palavras sobre o abismo (p.35)”. Esses tombos e ascendências promovem fissuras sob os signos da poesia que Maria Machado nos entrega. “ Acender” e “ tombar” as palavras é nesse esteio que a escrevivência da poeta vai se fixando nas páginas do papel. Palavras calcadas na intempérie da ventania. É o colo do vento que acolhe a linguagem poética de uma ancestralidade versíca contida em “ Vermelho como o vento”. Colo que ora conduz, ora espalma. Ora acalma. E sem hora produz o caos.

Digo, sem temor, que o vento é a grande voz que ecoa na obra. É o que vocaliza uma dicção importante e urgente para o construto de respeito a uma das modalidades espirituais que mais sofre preconceito em nosso país. Contudo, não estamos diante de um livro “bandeirista” de uma religião. Também sentimos que a poeta não quer fazer de uma espiritualidade um cavalo de batalha. Um cabo de guerra. Sendo assim, ela vai remontando aos temas centrais dos poemas – o amor, o erotismo, a sensualidade – : “ já tentei esquecer as tolices que você dizia/ entre gemidos”; “o amor modela o gesto/ porque quem ama de olhos abertos,/ ama mais os outros que a si próprio”.

A composição dos poemas da obra cria pontes entre os mundos da 1) da imanência, imbuída na rotina, no cotidiano do humano, pois “quem dança não é quem levanta poeira, quem dança é quem reinventa o chão”. E o mundo da 2) transcendência, que liga todo esse chão aos espectros do ar, do vento – as divindades. Nesse sentido, o vento é entendido como travessia, de um povo que sempre teve sua fé subjulgada ao esconderijo, ao hibridismo, às sombras daquilo que se convencionou chamar de “sincretismo religioso”. Acredito que por isso no poema zero do livro, no primeiro verso a palavra “Exu” se ergue como uma espécie de grito ancestral. Se ergue como aquele que é o guardador do tempo, tal como Cronos se estabeleceu para a imposição ocidental.

Essa transcendência é forte. E vamos tendo contato com ela durante a leitura dos poemas. As marcas de tais aspectos, ao nosso ver, se estabelecem nas reticências, nas exclamações, no uso de alguns vocábulos. Mas o que me apetece é que a linguagem não consegue transpor tal força, de modo que a autora recorrer a outros idiomas de comunidade africanas, como complemento ao nosso código linguístico. É o que se observa nos poemas: 8, 52, 64 ou mesmo no glossário no fim do livro.

Diante de tudo – insisto. O vento age no livro como uma metáfora fundadora dos poemas que compõem a tessitura dos versos da obra. Move a teimosia, despedaças os novembros de Conceição Machado. E a “férrea força que desliza no tempo”, formam “os trilhos, o rumo” são todos compostos com toda vermelhidão que há em seus significados: paixão, fúria, desejo, excitação, velocidade, fogo, perigo, amor, calor, poder, força, etc. E tudo isso instrumentaliza o vento contido na obra. Montada sob uma espécie de estética de Oyá/Iansã, orixá feminino dos ventos e rios: “seres do ar / seres do ar constroem sua casa no vento […] no meio do redemoinho”.

 

ventos que varrem

que giram

que soam

ventos invadem

cantam

ventos que levam

que causam (poema 7, p. 24)

 

Estamos diante de uma semiótica do vento, do ar.

Esse elemento da natureza, segundo a autora e sua composição estética, é capaz de “parir caminhos”, “abrir veredas”.

Por isso, os ventos sopraram esse livro para o DE OLHO DA ESTANTE  e nós não resistimos à leitura de “ Vermelho como o vento” ( Arribaçã, 2022). Siga então os bons ventos.

 

* Johniere Alves Ribeiro é professor-doutor e resenhista parceiro da Arribaçã. O texto acima foi publicado na seção “DE OLHO NA ESTANTE”, em seu perfil no instagram: @johniere81

 

 

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O livro “Vermelho como o vento”, de Conceição De Maria Machado, pode ser adquirido AQUI

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