Por Rodrigo Luna
Revisitando as concepções clássicas sobre o tempo, Henri Bergson nos adverte que a nossa própria percepção de tempo é inapelavelmente subordinada à nossa subjetividade, uma espécie de solipsismo pragmático. A concepção do tempo dito kronos, aquele que se pretende medir através de artefatos tecnológicos, difere daquela presente no tempo aión, que não pode ser reduzida matematicamente, senão à ideia de uma integral. O tempo aión é um moto-perpétuo, um contínuo fluir.
O leitor atento às próprias percepções encontrará neste livro mais uma evidência das divergências do tempo e suas relações com o espaço. Do frio da Bretanha ao calor do sertão nordestino, das cores das paisagens matutinas à inconclusão imagética num lusco-fusco do fim da noite, toda palavra nos arrebata para esse fluxo sinestésico e contínuo, a partir do que a poeta Maria de Fátima de Barros Neves nos propõe no seu “Em Meio-Tom”.
Para o leitor que acompanha Fátima desde obras anteriores, como em “Marca d’Água”, “Ponto de Fuga” ou “Retrato em Giz”, o mesmo elã característico da poeta estará presente, com suas surpresas rítmico-melódicas, seus jogos ortoépicos, sua polissemia imagética…
Mas há, no horizonte de eventos exógenos ao livro, fatos históricos que contracenam com a sua gênese. Ainda que não intencionalmente, “Em Meio-Tom” nos serve de resposta provisória ao estardalhaço ocasionado pelo advento do uso das Inteligências Artificiais na produção textual, momento em que se suscita a pergunta: “como serão os poetas de amanhã?”
Este “Devaneio” não encontra sustentação diante do projeto de intersubjetividade que Fátima nos insinua em poemas como “Pouso”. Nesse exemplo, a poeta estabelece um dueto com o leitor, que realiza em sua mente a conclusão das imagens cuidadosamente lacunares no rizoma poético escrito. Tais insinuações, ao impregnar as nossas mentes, exigem do leitor uma postura ativa na efetivação do poema, na construção de um monumento arquitetônico em seu Aión interno. De algum modo especial, a poeta conhece o leitor de um jeito que não pode ser artificializado.
Habilmente se valendo de melodias intrínsecas, como em “Composição”, a poeta “grava em redemoinho” o seu poetizar. Aliás, ela explora as fronteiras entre música e poesia até onde é possível, pondo em suspensão as concepções aristotélicas de classificação, como em um estado de Epoché Fenomenológico. Parece ser possível ouvir um semitom no título do livro; há um dualismo barroco nas “rendas de silêncio” em “Haveres”; ouve-se um “Noturno” de Chopin “quando sombras caminham silenciosas pela casa”; há a presença do “solfejo de ninho” em “Cantinela”.
A poeta estabelece um concerto literário de alvenaria sonora, cuja magnificência fica ainda mais evidente em poemas lidos em voz alta, como em “Definição” ou em “Assovio”. As imagens, que extrapolam as fronteiras de seus signos linguísticos, servirão como aglomerantes neste concerto entre poeta e leitor, fazendo da própria poeta “A Tecelã”.
O tecido resultante da escrita poética de Fátima se vale de elementos estruturantes da linguagem musical, tais como repetição, contraste e a própria ideia de textura. A fascinante imagem do tempo é recorrente em seus poemas, sempre se manifestando em seus contrastes. Dessa forma, o leitor tem acesso às memórias da poeta, turvando as fronteiras entre o kronos e o aión, e mesmo as fronteiras entre o subjetivo e o intersubjetivo.
A figura do pássaro, outra recorrência no imaginário da poeta, se esmiúça em seus contrastes, tal como uma ideia ontológica que se concretiza em diferentes instâncias. Em poemas como “Pergaminho”, “Canto” e “Ave De Arribação” encontram-se libações deste desejo do “ser”, que por sua vez encontra no leitor a ressonância necessária para uma chave hermenêutica dessa recorrência. Mais uma vez um dueto é estabelecido. Um desejo universal de voar, de estar em todos os lugares, geofísicos ou não, como a representação do olhar da pessoa amada transfigurada em “terra de pássaros”, no poema “Prelúdio”.
O amálgama de sons e sentidos que Fátima nos apresenta nesta obra que o leitor tem em mãos, se não suficiente para contestar definitivamente as crenças em uma Inteligência Artificial capaz de suprassumir a dimensão do humano, pelo menos estabelece desafios íngremes ao que está posto como ameaça no momento da concepção desta obra. E a sensibilidade da leitura sobre o tempo que a poeta nos empresta, ao destronar kronos e estabelecer a república do tempo aión, nos remete pragmaticamente ao solipsismo sugerido na famosa carta de Albert Einstein, dirigida à viúva de seu amigo: o tempo é uma ilusão persistente.
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O livro “Em meio-tom”, de Maria de Fátima de Barros Neves, pode ser adquirido AQUI