Hildeberto Barbosa Filho
Não saberia ler “O irreal e a suspensão da credulidade”, de W. J. Solha, sem inseri-lo no contexto poético de seus títulos anteriores, a saber: “Trigal com corvos” (2004), “Marco do mundo” (2012), “Esse é o homem” (2013), “Deus e outros quarenta problemas” (2015), “Vida aberta: tratado poético-filosófico” (2019) e “1∕6 De laranjas mecânicas, bananas de dinamite” (2021).
Por que?
Ora, porque creio que esse paulista-paraibano vem escrevendo um longo poema, diria mesmo um “macrotexto”, para me valer da terminologia de Maria Corti, estudiosa italiana referida por Vitor Manuel de Aguiar e Silva, em seu consagrado manual Teoria da literatura. Cada livro, em si, possui sua autonomia formal e semântica. Pode ser lido sozinho. Nada impede, no entanto, que o leia, a cada um, na perspectiva do conjunto, pois me parece que os sete títulos configuram um volume só. Principalmente se me atenho aos predicados ostensivos de uma poética em espiral, de uma poética da leitura, de uma poética propedêutica, cujo ponto mais agudo culmina com o encontro metalinguístico e filosófico diante do espetáculo do conhecimento e do mundo.
Vejo, assim, nessa nova incursão de sua escrita criativa, uma agônica odisseia pelos reinos da palavra e do pensamento, uma espécie de autobiografia intelectual, artística e filosófica, uma tensa e aguda meditação acerca dos artefatos da existência. Os materiais e os intangíveis. Os reais e os simbólicos. Os sagrados e os profanos. Os físicos e os metafísicos. Sobretudo, uma reflexão, ao mesmo tempo vertical e dilacerada, sobre os caminhos e os descaminhos das criaturas humanas na sua permanente e incontornável persecução de uma lógica para os fenômenos, de um sentido para a misteriosa e opressiva necessidade de existir.
Do alto de sua vasta e variada erudição, Solha estabelece, em meio a um estilo mesclado, intumescido por nutrientes referenciais de múltiplas procedências, as mais surpreendentes conexões entre o verbo e a vida, entre os signos e os repositórios culturais que aproximam e separam o coro das civilizações. Das inscrições nas cavernas à digitalização. Dos objetos do paleolítico às seduções da inteligência artificial. Dos mitos ancestrais à dispersão massiva dos meios de comunicação social. Do papiro, da argila, da pedra lascada aos passeios solitários das naves espaciais pelos céus cinzentos da contemporaneidade.
Ao estender o imenso tapete de sua geografia textual, num ímpeto onívoro, ousado, obsessivo, elabora uma sólida e severa investigação acerca da viagem humana, com seus acidentes, paradas, recuos, avanços, respostas, perguntas, desvios e destino. Viagem que traz à tona os desafios da sensibilidade, o descompasso das emoções, os perigos do conhecimento. Suas ilusões e seus dissabores.
Com descrever, narrar, também dissertar, e, nesta dissertação que funde, num mesmo tecido linguístico, prosa e poesia, lírica e drama, épica e ensaio, produz a crítica dos limites que tolhem os passos do homem diante dos enigmas que lhes são apresentados e simultaneamente submetidos ao olhar das ciências, das religiões e das artes.
Diria que há uma recorrente ansiedade, vezes mesmo toques de angústia, cadenciando o movimento dos versos, pontilhando temas e motivos, ideias e imagens, conceitos e sensações, a construir a estrutura tectônica, híbrida e ambivalente, desse mosaico de técnica e saberes. De constatação e crítica. De exegese e invenção.
Táticas intertextuais, estratégias paródicas, citações, fragmentos, aforismos, entre outros recursos retóricos, são utilizados com domínio e desenvoltura. Solha como que ensaia, no seu caleidoscópio verbal, um pastiche de si mesmo, uma estilização de seus próprios torneios fraseológicos, na medida em que, citando muitos e citando-se, ele mesmo, escreve e rescreve o grande poema enfeixado nesse conjunto de textos a que este novo título intenta encerrar.
Será?
Em certo momento, a enunciação lírica parece dizer que não, uma vez que “a sina – clara como um paradigma do ser humano ∕ é ∕ decifrar ∕ o enigma!”. Ou, em outra clave, “Feliz ∕ é quem pode conhecer as causas ∕ das coisas ∕ disse-me o meu caro Publius Vergillius ∕ Maro”. Só que “ante o inacabamento fundamental, ∕ segundo Bachelard, ∕ do ∕ conhecimento, ∕ é irreal o estranhamento ante a ideia de que, ∕ segundo Popper, ∕ a certeza não está disponível, ∕ apesar de nosso esforço ∕ terrível”. “Somos”, continua a voz poética, “coitados: ∕ engraçadamente, ∕ desgraçadamente ∕ limitados”, embora haja “uma beleza sempre ∕ nas manipulações ∕ das muitas limitações ∕ de nossa natureza, ∕ como o branco-e-preto jamais obsoleto – sempre exaltado – de filmes como A ∕ Lista de Schindler, ∕ fotos de Sebastião Salgado”.
Os versos, aqui, que são prosaicos são poéticos. São poéticos e filosóficos, atentos sempre à disposição cognitiva, à volúpia cética, à desesperada e melancólica vontade de compreender.
- J. Solha é um criador e um bricoleur irmanados pela inquietação diante do sortilégio das palavras. Na sua dicção poética, o bardo deixa pulsar o frenesi do artista multivocal, e, de repente, o ator encena, no palco dos vocábulos, os conflitos inadiáveis que fazem submergir o homem no naufrágio da existência.
Ora, é o pintor que transmuta o léxico em cores vivas, em pontos de fuga carnais, em toscas silhuetas por onde fluem o sangue da tradição epistemológica. Depois, o dramaturgo, na edição do ato ordenador, dirige a circularidade do texto, na dinâmica das redes significativas que navegam em sua sintaxe, estilhaçando as ideias e multiplicando os sentidos.
O irreal e a suspensão da credulidade, em seu titulo à Samuel Taylor Coleridge, poeta do romantismo inglês, e sob o olho vigilante de Hórus, deus egípcio, símbolo da acuidade e da justiça, denuncia o malogro e o desamparo da condição humana, mas, enquanto realização estética que vê, escuta, toca, cheira e degusta, parece sinalizar para os vocativos da arte, talvez a única forma de se preservar a beleza do mundo. Assim como, talvez, a beleza o possa salvar.
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O livro “O irreal e a suspensão da credulidade: Sexto tratado poético-filosófico”, de W.J. Solha pode ser adquirido AQUI