Et in Arcadia Ego (e lá dançamos o Toré)

Quando fui convidada para apresentar esse livro/tese passei algum tempo sem poder ler os originais. O luto nos deixa inerte. Ele é essencialmente, um confronto do homem com a sua própria mortalidade como nos traduz, em imagens, Poussin. Necessário é não esquecer seu titulo traduzido do latim mais próximo “eu também [estou/estive] na Arcádia”, mas sem esquecer que lá dançamos o Toré.

Dois anos depois da sua morte eu ainda tenho dificuldade em escrever sobre o texto/tese de Carlos Romeu Cabral, tão importante para a História da Arte brasileira. O tempo não é tão clemente assim para as grandes tristezas como eu acreditava. Mas, Carlos, essa grande promessa para a pesquisa nacional, de quem as parcas abreviaram a permanência entre nós, não podia ficar restrito ao âmbito daqueles que o conheceram e amaram. Seu trabalho precisava ser compartilhado para que, além de o perdermos fisicamente, nós não ficássemos também sem as suas últimas pesquisas e reflexões. Sem os seus registros, sem as suas palavras.

Em um país onde as minorias são pouco levadas em conta e os eixos não hegemônicos permanecem marginais ao pensamento nacional, onde as diferenças não são respeitadas e a esperança é rara, Carlos Romeu Cabral (Carlinhos) foi um sonhador que lutou por seus sonhos até o seu último momento nessa efêmera vida.

Ele era metade Xucuru (o grupo indígena brasileiro que habita a Serra do Ororubá, no município brasileiro de Pesqueira, estado de Pernambuco) e suas raízes muito contribuíram para o seu olhar. Jovem professor, pesquisador competente vindo da pequena cidade do interior de Pernambuco ele tornou-se um sobrevivente de todas as estatísticas, sempre acreditando obstinadamente nele esmo e em seus sonhos.

Conheci Carlinhos aluno da licenciatura em Artes Visuais da UFPE onde eu ensinava (e ensino). Corriam os anos 90 e ele era aquele que queria mais, aquele que faz com que o professor acredite que escolheu certo, aquele com o qual a gente tem certeza de poder assegurar a continuidade da difícil missão de repassar (e gerar) conhecimento. Seu sonho de ser um Historiador da Arte se confundia às vezes com o de conhecer o mundo. Ele conciliou. Carlinhos era um sonhador pragmático. Nele, fantasiar e realizar se harmonizavam.

Compreendi um pouco mais de meu amigo Carlos quando fomos à antiga Vila de Cimbres que atende também pelo nome incrivelmente poético de Nossa Senhora das Montanhas. O local foi (re) batizado depois de ser conhecido como Missão de Ararobá. Tornou-se então Monte Alegre e finalmente Cimbres, quando foi elevada à categoria de vila em 3 de abril de 1762. Foi olhando o Toré dançado no adro da igreja que vi o como ele podia ser cosmopolita em suas pesquisas, mas também como retornava com intensidade às suas raízes.

Carlos foi um jovem e competente professor e historiador. Um militante. Recebeu prêmios e ia ter seu primeiro livro publicado. A pandemia levou muita gente especial e outros foram de certa forma, vitimas das circunstâncias hospitalares daquele momento. Foi o caso de Carlos Romeu Cabral e de tanta gente nesse país. Ela também atrasou a publicação desse livro mesmo quando seu autor ainda estava entre nós. Premiada ela, a tese, estava sendo transformada em livro que seria disponibilizado para o público da área. Não deu tempo. Ela vos chega na forma original, ainda na linguagem científica das teses acadêmicas .

Mas, suas pesquisas e palavras resistem e seu companheiro resolveu disponibilizá-las para aqueles que, como ele, buscassem conhecimento na área de artes visuais e de sua história para além dos eixos hegemônicos.

Seu trabalho envolve seu amor pelo conhecimento e a elaboração de novos questionamentos em uma ação que demanda vontade, dedicação e perseverança. O texto Conexão Recife – Paris: transferências artísticas e descentralização da arte moderna brasileira. A obra de Fedora (1889 – 1975), Vicente (1899 – 1970) e Joaquim do Rego Monteiro (1903 – 1934) nos traz discussões sobre colonialidade, legitimação artística e de gênero tornando-o precioso e provocativo.

O olhar curioso do pesquisador busca entender como eram vistos os artistas estrangeiros em Paris e no Brasil na época estudada a partir de uma família que se destaca nos dois espaços, os Rego Monteiro: Fedora, Vicente e Joaquim. Toda uma análise contextual acompanha a obra de Carlos que nos explica:

É dentro desse contexto franco-brasileiro de colonização, deslocamentos, mudanças e transferências culturais que esta pesquisa se define e se desenvolverá, procurando investigar a dimensão material da cultura brasileira, através do estudo das produções artísticas de lugares, autores e períodos históricos variados.

E ele mergulhou nesse contexto sociocultural buscando compreender através da consulta de arquivos e da bibliografia disponível o papel das trocas entre Pernambuco e de Paris através da vida e obra dos irmãos Monteiro que, a exceção de Vicente do Rego Monteiro, foi por muito tempo, pouco visitada pela História da Arte brasileira.

Existiram modelos alternativos de modernidades, processados pelas zonas artísticas periféricas do Brasil? Essa é uma das perguntas que Carlos Romeu responde ao longo de todo o texto “considerando as relações de poder e de dominação cultural que contextualizam as transferências e as trocas artísticas no país”

A conclusão nos reporta a respostas para a narrativa hegemônica sobre a história da arte moderna brasileira. Outros caminhos. Uma proposta de reflexão sobre a importância do Nordeste, do estado de Pernambuco, da cidade de Recife para o cenário artístico moderno nacional e a influência dos irmãos Rego Monteiro nele.

Sem dúvida, uma contribuição enorme na elaboração de outras Histórias da Arte que estão sendo construídas também a partir das margens e da qual Carlos Romeu Cabral participou até o fim.

 

Por Madalena Zaccara/novembro 2022

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Madalena Zaccara é Professora titular da Universidade Federal de Pernambuco. Doutora em Historia da Arte pela Université Toulouse II, França,  pós doutora pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Portugal e pela Sorbonne, França. Tem vários livros publicados.

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O livro “Conexão Recife-Paris: transferências artísticas e descentralização da arte moderna brasileira – A obra de Fedora (1889-1975), Vicente (1899-1970) e Joaquim do Rego Monteiro (1903–1934)”, de Carlos Romeu Cabral, pode ser adquirido AQUI

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