Além da letra aparente

Por Silviani Müller Baroni

 

Tenho uma sadia inveja dos escritores russos (Pushkin e Turguêniev, por exemplo), porque eles sempre conseguiram, para além da trama, ou usavam a trama, para deixa-la como cortina do “cenário”. Há nas histórias mais do que ela aparentemente mostra. Há o social ali, poético, dramático, sólido, quase inafastável da agonia dos personagens principais ou coadjuvantes. Críticas sociais, mais que romances ou contos. Exemplos? A Dama de Espadas e Relíquia Viva, na ordem dos autores.

Um contemporâneo, moçambicano, sim, Mia Couto, me destrói de admiração, espanto e emoção. Eu diria sadia inveja também, porque, além do olhar sobre o todo, sobre os dramas “acessórios”, faz tudo com frases tão lindas e cheias de dor, de alegria ou fé que partem o coração (Terra Sonâmbula me fez chorar). Sim, eu tenho um, às vezes ele até funciona, como nas obras dos escritores, para além do mero movimento que mantém o corpo.

Preambulando o quê, Barone? A dimensão, se é que seria possível sem a leitura, do solavanco que meu coração deu, assim que comecei a ler Asas de Terra e Sangue, da minha amiga Ivy Menon.

É tudo isso, é Pushkin e Mia Couto, o olhar firme do primeiro, a sensibilidade e a poesia do segundo. Está tudo ali, vida, fome, alegria, paisagens, leveza, dor. E tudo com uma poética crua, quase cirúrgica e cruel, mas, ao mesmo, tempo encantadora, de deixar hipnotizado, perplexo, totalmente preso, refém da magia, da terra, do sangue, da inocência e do drama. Sem notas específicas de bem ou mal, o caldeirão do mundo nos olhos da criança que leva a vida pela vida em si, que aceita um Picolé de Geada como um maná que veio do céu, não no deserto geográfico/místico/religioso da história oficial, mas da Sibéria em tom menor, em que pese com o frio que vem mais da desigualdade que do termômetro. Mesmo assim, a personagem que quebra o gelo do solo com os pés descalços, glorifica o viver e agradece com aquela pureza que só as crianças e os espíritos livres conseguem fazer.

‘O pai bebia medos’, ‘Tínhamos mais estômagos que farinha’, ‘A vida era feita de morte e farinha’. Se eu colocasse, após as citações, Mia Couto ou Graciliano Ramos, poucos seriam capazes de duvidar. Mas é Yvi Menon, assim como os cenários não são de autores russos, mas dela, claro, de alguém que escreve como todos eles com uma vantagem, viveu na pele, no olhar, no estômago e nas lágrimas represadas, por isso, diferente deles, nos entrega crônicas, ou seja, realidade nua e crua, como eles, mas tirada por ela do sangue, das asas que desejava, da terra que, cedo, se viu obrigada roçar, a limpar, a colher, quase sempre sem poder usufruir.

E, saibam, estou começando a página 62 de uma vasta terra regada a sangue de 238.

Lembra algo? Sim, um país de desigualdades de 523 anos. Da infância da autora até aqui, só os métodos mudaram para adaptação e manutenção da tragédia que vivem os explorados e invisibilizados da periferia do capital, no bolsão da miséria para o bem-estar do antro da desumana concentração de renda.

Seria Prêmio Jabuti, sem sombra de dúvidas, se a premiação retomasse suas origens e voltasse a premiar a literatura de verdade, sem afetações intelectualoides e ranços políticos de direita ou de esquerda. Mas a Ivy não precisa do Jabuti, ela é maior que o prêmio.

Que bom que esta maravilha chegou as minhas mãos, aos meus olhos, ao meu coração.

Leitura obrigatória para quem quer entender de Brasil, de vida além das imagens de televisão e revistas, de vida, morbidamente, só aparece em dados estatísticos, sem nomes, sem olhares, sem sorrisos, sem sangue. Só números de vergonha e infâmia. Leitura obrigatória para quem ama a literatura/arte. Grato, Ivy, por ter me feito maior e dar ao meu peito um pouco de sensibilidade.

 

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