De meninos e poetas

Em Canapu, Agnaldo Lima explora a persona poética do menino poeta ou do poeta menino. O subtítulo da parte inicial do livro, “poemas para meninar outra vez”, já seria uma primeira pegada a ser avistada nesse caminho. Nesse segmento, a figura que emerge mais substancialmente é a do poeta menino, daquele que, tendo abandonado a infância há tempos, vê na poesia a possibilidade de se tornar novamente criança, (re)vendo as coisas do mundo com um olhar fresco e fértil.

Contudo, a passagem do tempo não pode ser ignorada: “ficam para trás/nossas ilhas”. Pedaços de histórias passadas compõem o mosaico do que somos no presente. E é bem significativo que Lima tenha escolhido como epígrafe, para essa seção, os versos de Marta Cocco, que celebram o vento, capaz de “varrer as poeiras do tempo” e “aspirar os anéis dos dedos”. Lima também anseia por tal ventania de renovação e desprendimento.

O poeta sente que precisa “me/ninar outra vez/formatar o cérebro/remover o teto/adormecer de lua”. A lufada do vento renovador deve necessariamente alterar o seu modo de percepção. E a própria substância do poema se revela uma evidência de que esse processo já está em curso. A palavra “formatar”, emprestada do campo semântico da informática, confere um tom de novidade inusitada ao verso. O cérebro está sendo formatado, assim como o HD de um computador, com vistas a torná-lo o mais ágil e afiado.

A remoção do teto indica ainda a amplidão de visão que se deseja alcançar. Da mesma forma, a ideia de adormecer sob a lua remete a uma imagem de liberdade, de dormir ao relento, assim como os animais selvagens. Mas a expressão utilizada é “de lua”, o que, além do sentido referido acima, parece reverberar os significados contidos na gíria: alguém que muda constantemente, que não é sempre o(a) mesmo(a). A mudança, a não conformidade, a não resignação enchem os olhos do poeta.

Além disso, a voz poética escreve poemas para meninar outra vez, para voltar a ser menino, mas também para ninar-se a si mesmo. Uma poesia que transforme e embale, que destrua a fossilização causada pelo tempo, mas que ainda seja capaz de dar algum alento, é o que avidamente busca esse poeta menino.

Mesmo avançando em sua caminhada, ele abre espaço para o autoquestionamento: “agora/olhar esgazeado, / ressecado, envelhecido/ cheio de in/certezas, /poderia eu saborear os instantes/ da travessia?”. Afinal, quem se lança ao novo, ao desconhecido sempre levará na bagagem alguma dúvida. Mas isso está implícito na própria dinâmica. Como sabemos, as mentes infantis são as mais curiosas, as que mais endereçam perguntas ao mundo. Aquele(a) que está em busca de voltar a ser criança não pode escapar das indagações constantes.

Ainda que pareça ser o território inconteste do poeta menino, na primeira parte, também aparecem os contornos do menino poeta: “todo menino/carrega no peito/inquietação dos deuses/e poetas”. Não poderia ser diferente, pois, pelo menos neste livro, um não existe sem o outro. São ambos extremos que se unem, as pontas atadas da vida. Assim, o poeta adverte a si mesmo – e a quem mais o acompanhar: “ainda há tempo/arme-se de rosas/dance a música/do vento e pássaros”.

A sabedoria popular afirma que o menino é o pai do homem. Nada mais verdadeiro, pois todo(a) adulto(a) está enraizado(a) nesse vaso fervilhante que é a infância. Mas também, para que haja um menino, é preciso que tenha havido um pai. E, talvez principalmente, uma mãe. A segunda parte do livro vem como uma reafirmação dessa lei natural, fazendo o vento da renovação soprar também sobre a linhagem familiar.

Surpreendentemente ou não, a mãe é evocada como menina: “antes do ventre/decifrei segredos de raízes/ tapete de amor a teus pés/ para quando árvore/exalar aroma em flor/sabor de fruto em vida plena”. Nesse processo de autoformatação, o poeta parece sentir necessidade de ir além, “resetando” a própria fonte de onde brotou. Escrutinando as raízes da mãe, tecendo com elas uma tapeçaria de amor, ele, poeta menino quando menino poeta, talvez possa usufruir da doçura de frutos bem cultivados.

Nesse sentido, a mãe, que “não assentia tornar-me pássaro/tocar as nuvens e limites do céu”, poderá, quem sabe, abandonar essa posição castradora e oferecer um seio mais nutritivo. O pai, por outro lado, retorna sob uma luz favorável: “papai sabia minha agonia/fome de asas sede de poesias”. O fato de o pai conhecer a agonia do filho indicaria que ele também está sedento de poesia?

No poema “café da manhã”, a palavra “pai” não aparece. Mas quem mais poderia encarnar esse “homem norte” a quem a composição é dedicada? Mais uma vez sua figura ressoa positividades: “tua voz branda e passos/prepararam terra fértil/solo de minha nascença/teus versos alimento/de alma e espera/para o café da manhã”. A simbiose entre a voz poética e esse lavrador do seu solo primordial desenha-se na ambiguidade de “teus versos alimento”. São os versos do pai que funcionam como alimento ou é o filho que alimenta, com sua substância, os versos – talvez nunca escritos – do pai?

Depois de passar por esse mergulho nas origens, a voz poética apresenta a terceira e última parte: “…e o menino desabrochou poesias”. Nesse momento, outras filiações são traçadas: Manoel de Barros, Antônio Sodré e até mesmo o contemporâneo Everton Almeida Barbosa. Portanto, Lima reafirma o DNA mato-grossense de sua poesia. Ela é como o canapu, que dá nome ao livro e a um dos poemas que encerra a segunda parte, planta e fruto típicos do Cerrado, da Amazônia e da Caatinga. Um fruto “menos importante”, nascido “à margem do caminho”, mas que pode parecer tão saboroso quanto um “manjar” para um espírito faminto. De um local periférico, essa poesia jorra cheia de vitalidade.

Da mesma forma que Manoel de Barros, Lima enuncia seu amor pelas coisas menores, entendendo-as como também (ou talvez até mais) importantes. Ele deseja subir “no palco da vida/hiperativo/des/atento/ao relento/menino/com face muda/[…] ser bicho”. Muito se comenta a respeito da desatenção de pessoas hiperativas, mas frequentemente se esquece que elas geralmente desenvolvem um hiperfoco. Então, aquele(a) que parece desatento(a) talvez esteja mais atento(a) do que todos(as), prestando atenção em algo que os(as) outros(as) falham em perceber. Não aconteceria o mesmo com o poeta menino?

Com Canapu, aprendemos a mergulhar dentro de nós, em busca da infância perdida, para reaprender a ver. Nós, que “às vezes/fechamos portas/olhos e coração/trancamos janelas/ouvidos”, somos convidados(as) a abandonar as vendas, abrir janelas, olhos e ouvidos. Quem não tiver medo de fazer isso certamente chegará ao final da leitura fertilizado(a) pela poesia de Lima. Diante da própria morte, inclusive, poderá, quem sabe, enfrentar com mais sabedoria “a cruel questão/o que mesmo fiz?”.

 

Divanize Carbonieri

Professora e escritora

Universidade Federal de Mato Grosso

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