Há quem acredite sermos todos prisioneiros das configurações históricas e geográficas de nosso tempo. O espírito da época desenhando as linhas de nossos rostos, nossos humores, crenças e vontades. Muitos escritores não só aceitam essa ideia, mas também se comprometem esteticamente a realizá-la, emprestando a seus textos um testemunho pretensamente fiel ao que imaginam ser suas realidades mais imediatas. Outros pensam a humanidade em um moto-contínuo com poucas e sutis variações, preocupando-se menos com os sopros dos ventos, seus aromas de estação, e mais com os mecanismos a fazer as hélices girarem. É nesse segundo grupo que Lourenço Dutra se insere ao nos oferecer um texto quase todo ambientado numa cidade que, não por acaso, é a capital de um país eternamente em formação, mas que, tanto concreta quanto simbolicamente, se apresenta no decorrer da narrativa como ideia inacabada, invenção de arquitetos, sonho de escritor.
As cenas vão se sucedendo com grande velocidade e formam um expressivo mosaico no qual os conflitos das relações sociais, os jogos de poder, as camaradagens e angústias da infância, as transformações da adolescência e os desafios da idade adulta são problematizados e examinados pelo autor/narrador, ele próprio uma ficção de si mesmo, um eu ainda por se formar.
O melhor de tudo é que Lourenço demonstra um hábil manejo da linguagem, prestando tributo ao bom e velho Hemingway. Seu estilo é enxuto, seus diálogos precisos e seu vocabulário jamais pesa em imagens desnecessárias ou pedantes. O que diz é dito na justa medida.
Falando de si mesmo, utiliza uma ironia que resvala num narcisismo às avessas, sem espaço para a pena, para o exercício enganoso da autopiedade. Faz isso como quem examina a própria história e, desconfiando dela, desconfia de si mesmo.
Esse olhar duro e agudo se espraia em outras personagens, outras vidas. A visão que tem do pai, por exemplo, oscila entre a amorosa e a realista. Ele vai,com o decorrer das cenas e da vida, descobrindo um pai com seus acertos e muitos erros e o ama assim mesmo, ainda que se desvencilhe, vez ou outra, de seu aspecto puramente crítico e permita à narrativa alcançar um grau de lirismo e ternura.
O autor em “A doze” desvela, registra e fotografa um cenário quase pré-urbano de faroeste, onde a aproximação com a natureza serve também como alegoria para traços psicológicos, impulsos e tensões dramatizadas.
Destaca-se que, embora haja muita força na representação da história factual de Brasília, o cenário não é o único e grande protagonista deste livro. Lourenço Dutra buscou evidenciar o patético por trás do drama humano: a tentativa inglória de se estabelecer um lugar seguro para a existência e, assim, lhe conferir um traço de individualidade. E, para sorte dos leitores, ele alcança seu intento com louvor.
LIMA TRINDADE
*texto das orelhas de “A Doze”, de Lourenço Dutra, publicação da Arribaçã em 2024