Por M.S. Saraiva
O belo livro “Asas de terra e sangue” (Cajazeiras : Arribaçã, 2021) — da escritora, teóloga e poeta paranaense Ivy Menon — é uma reunião de 84 crônicas curtas, mas de grande densidade memorialística. Menon repassa diversos episódios que viveu desde a infância até hoje, nos oferecendo um mosaico existencial com algumas reflexões filosóficas sobre o sentido da vida e do Sagrado.
Algumas crônicas são mais divertidas, mas na maioria delas encontramos uma vida difícil, atravessada pela fome, pela luta dos sem-terra para sobreviver, pela exploração da mão de obra de boias-frias, pela corporalidade, pela natureza, pelos preconceitos.
Não é um livro de dores e tristezas, uma exaltação depressiva, mas as perdas e os lutos estão presentes, sempre com uma dose de lirismo, de encantamento, de abertura para a esperança. Menon evita as asperezas através de sua engenharia de palavras que prestam alguma beleza — e por vezes, bom humor — para o sofrimento, sem querer legitimá-lo.
O que torna este livro muito significativo é o fato de que o mesmo traduz a vida dos pobres espalhados nesse Brasil profundo e rural, sem acesso aos bens mais básicos, como água potável para beber, banheiro, esgoto, renda e comida. Ainda assim, paradoxalmente, “éramos felizes e sabíamos” (p. 50), pois “não havia em nós qualquer indício de tristeza ou revolta” (p. 79), mas sim um catolicismo popular e mágico que os sustentava na luta pela terra, pelo seu direito de existir, “pelo sinal da Santa Cruz” (p. 109).
É nesse sentido que o fazer memória de Ivy Menon é também um resgate, através de sua escrevivência, da imensa pobreza existente nesse país tão rico, tão farto e tão marcado pelas abissais desigualdades sociais mantidas por uma “elite do atraso”. Menon tem plena consciência que “não há romantismo na falta do que comer” (p. 125).
“Asas de terra e sangue” não é um panfleto ideológico. Ainda que Menon assuma ser “de esquerda e…selvagem”, suas crônicas sobre o ontem-hoje têm muito afeto, coração, lágrimas e sorrisos, perdas e dores, literatura e reconstruções imagéticas, porque “criança que cresce solta no mato, se deixa levar pela imaginação. Não se tem nada, a não ser fantasia” (p. 43).
Impossível não se ver em diversos momentos e, mesmo que o leitor venha de família rica e distante dessa realidade narrada por Menon, o livro poderá servir de mergulho literário na experiência existencial dos pobres, seus sonhos, expectativas e frustrações. E neste ponto, humaníssimo, há muitos encontros-espelhos, ainda que Menon diga: “não sei contar todas as dores que vivi” (p. 173).
Ler “Asas de terra e sangue” é conhecer um pouco sobre as classes subalternas em seus setores mais vulneráveis, envoltos em terra e sangue, carregados por mulheres-árvores que por vezes exageram na “cerveja, o ópio dos pobres” (p. 210).
(M.S. Saraiva é escrevinhador e leitor compulsivo)