Por José Mário da Silva
Discorrendo, certa feita, sobre “A Pedra do Reino”, paradigmático romance do mestre paraibano Ariano Suassuna, Rachel de Queiroz afirmou que é tarefa muito difícil se pronunciar sobre um autor erudito, que leu muito, viveu muito, escreveu muito e sabe muito. Escritores assim, caleidoscópicos, desafiam a recepção crítica, ao mesmo tempo em que se impõem como permanentes desafios teóricos para quem deles se aproxima, anelando, nas asas lépidas e mágicas da leitura, captar os sentidos e as significações que as suas obras não cessam de exibir. Penso, e estou bem persuadido de que, no panorama atual da rica produção literária paraibana, que está cercada de bons valores, por todos os lados, Waldemar Solha constitui-se num dos mais autênticos valores das nossas letras, com qualificado destaque nos mais diversificados campos em que tem atuado, imprimindo, em cada um deles, o indelével selo da sua competência criativa e criatividade competente.
Para me valer de uma certeira conceituação que o professor José Edilson de Amorim, doutor em literatura, tem utilizado para se referir ao criador de “A Canga”, podemos dizer que Waldemar Solha é um intelectual inquieto, antissistêmico, antidogmático, libertário, descentrado, sempre aberto, diria Fernando Pessoa, mais precisamente pela singular voz de Ricardo Reis, ao fremente e fascinante espetáculo do mundo, muito embora o faça em perspectiva doutrinária diametralmente oposta à postulada pelo clássico heterônimo do gênio português. É que, enquanto em Ricardo Reis a tônica comportamental recaía na semiótica da contemplação, assumidamente avessa a qualquer modalidade de envolvimento efetivo com o mundo, o que, ao fim e ao cabo, findou gerando uma estética tão solenemente bela, quanto marmoreamente mortífera, em sua apática cosmovisão, de acordo com o acertado dizer crítico de Leyla Perrone-Moisés, no modelar ensaio “Pensar é estar doente dos olhos”, na poética engendrada por Waldemar Solha a palavra de ordem é penetrar, surda e altissonantemente, na desordem desconcertada do mundo, com o objetivo primacial, não de transformá-lo, missão, mais que difícil, quase impossível, mas sim de compreendê-lo, até onde possível for, até onde alcança a nossa vã sabedoria.
É por esse patamar que a epistemologia poética de Waldemar Solha, que se encontra alicerçada num sotaque intertextual sobremaneira amplificado em seu incontornável percurso, ganha uma espessura filosófica sumamente adensada, em cujas oceânicas águas o eminente escritor paraibano vai mergulhando, visceralmente, nas dobras e camadas do pensamento humano que se foi tecendo e destecendo, ao longo dos tempos. Logopeica, naquele sentido postulado por Ezra Pound, em seu pedagógico livro “ABC da Literatura”, a poética de Waldemar Solha, lírica, épica e dramática, no embaralhamento que, deliberadamente, promove dos gêneros literários, no final das contas, finda se constituindo numa vasta e desfronteirizada meditação sobre a realidade, a linguagem, a política, a história, o poder, a vida, enfim, em suas grandezas e misérias.
Nesse périplo, urdido por uma espécie de subjetividade ziguezagueante, impressiona o volume de saberes que Waldemar Solha mobiliza em sua transdialética odisseia; e tudo, convém que se acentue, com invulgar propriedade. Não estamos, aqui, inseridos no universo cumulativo de uma mera arquitetura de citações, procedimento tão recorrente em algumas escrituras estéticas ditas pós-modernas. Waldemar Solha foge dessas armadilhas, pondo, em seu lugar, com a enorme erudição de que é portador, as notas agudas de uma partitura musical que intenta acolher, em seu universo politemático, todas as vozes do mundo, bem como o mundo de todas as vozes, sem deixar de colocar em pauta, os seus particulares acordes.
É por esse viés que a plataforma poética instaurada por Waldemar Solha firma os seus pés no solo movediço da história. Ao poeta Waldemar Solha acumplicia-se o ficcionista, o dramaturgo, o roteirista de cinema, o ator, o pintor, o ensaísta, o letrista, enfim, o numeroso e multiplicado habitante daquele que Carlos Drummond de Andrade chamou de “o reino das palavras”, com as quais o escritor trava “a luta mais vã”; e das quais retira, numa espécie de “Guerra sem Testemunhas”, diria Osman Lins, a seiva e o sumo das suas vivências e da sua sobrevivência estética e existencial.
Recentemente, Waldemar Solha publicou a sua Autob/i/ografia, mas o fez em deliberada desconformidade com o padrão convencional que rege tal gênero pertencente às chamadas escritas da subjetividade, como se toda escrita já não fosse, medularmente subjetiva, em suas peculiares formulações verbais. Ao narrar-se, Waldemar Solha penalizou, deliberadamente, a linearidade composicional; e, em clave estrutural distinta apostou, todas as fichas do seu processo criativo, da reconstituição de si mesmo, na estética da fragmentação, bem como no arrimo de uma memória eminentemente atenta a tudo quanto foi vivido, desde o que se gestou, na geografia sorocabana, sua gleba natal, até o seu enraizamento no chão nordestino, mormente o do Sertão paraibano, do qual o atilado escritor retirou temas, motivos e motivações para a produção de algumas das suas criações literárias. Na pluridimensionalidade do seu ser-fazer estético, Waldemar Solha, consolidadamente, é um código onomástico que impõe respeito e exige hermenêuticas de longo fôlego.
* Artigo publicado no jornal A União de 11 de janeiro de 2024