Já li muitas definições de poema e poesia. Algumas ficaram tatuadas na memória. Por exemplo, quando Décio Pignatari disse que “a poesia é uma aventura, mas uma aventura planejada”. Como esquecer os mestres? No livro Aulas de Literatura, Julio Cortazar também disse que poesia “é tudo que fica de fora quando se busca definir o que é poesia”. Na verdade, ele não diz. Coloca as palavras na boca de um comediante cujo nome, estrategicamente, omite. O poeta Cláudio Daniel escreveu recentemente sobre poesia nas redes sociais e dele extraí uma das mais belas definições que conheço: “a verdadeira poesia, para mim, é aquela que pode ser suave como o vento ou terrível como um incêndio, um maremoto, uma revolução”.
O novo livro poeta Vamberto Spinelli Junior me parece fruto de muitas definições, provocações e mergulhos. Sobretudo, “nas águas do metapoema” – como dizia Modesto Carone. Mesmo que este não seja um limite do livro. O poeta persegue horizontes e, portanto, estabelece os processos de uma revolução permanente. Se referindo ao poema “Rios sem discurso”, de João Cabral de Melo Neto, Carone fala de algo fundamental: o “zelo explicativo”. Para ele, João Cabral “não se poupa esclarecimentos e, se preciso, oferece variações, sinonímias.” Em “Piquete Soledade” o poeta Vamberto Spinelli Junior ressurge mais amadurecido depois de estrear com o excelente, “Sem Lugar”. Parece definitivamente vocacionado ao esmeril onde redesenha as palavras para caminhar seguro no terreno pantanoso da invenção.
Metapoema não é nenhuma novidade na poesia, assim como a palavra “rio”, no poema “Rio Sem Discurso”, de João Cabral, não representa uma metáfora absolutamente inédita. Jorge Luiz Borges, inclusive, se refere criticamente ao destino repetitivo das metáforas. Na verdade, as metáforas se renovam sempre nas águas correntes do poema. A palavra rio, quase sempre transborda numa redefinição das margens. Da mesma forma que o metapoema é sempre uma reconfiguração extremamente reveladora dos ossos e das cartilagens na tese dos que afirmam que cada poema é sua própria teoria. Já li que poesia é o gênero que transforma tudo em linguagem. Desta forma, vejo que Vamberto abre o livro com uma definição muito clara: seu livro é um palco de inquietações onde a leitura é uma reinvenção da ribalta de cada poema.
O poema inicial, “Piquete Camusiano”, já nos primeiros versos, revela-se pela exatidão que o poeta busca de forma obstinada: “poema seja/ soco surdo/ tributo ao mundo/ / : ser em si/ ponte-abismo/ e único” (…) Não vejo aqui a exatidão enquanto abismo e sede. Lugar de esgotamento. Espaço de definições e conclusões. O poeta nos mostra o oposto. A exatidão enquanto lugar de procura. Um encontro definido com o infinito e com o indefinível. Mostra o quanto a melhor poesia sempre é um ato de rebeldia que exclui os desatentos. Afinal, toda “beleza é difícil”, como nos mostra Hopkins em tradução de Augusto de Campos. Mas que fique bem claro: na boa poesia não há espaço para uma leitura tabular. O bom poema sempre provocará sobressaltos e arranhões.
Na mesma pegada metapoética, Vamberto estabelece pontes filosóficas como esta: “escrever poemas/ é uma forma de resistir/ sem fazer/ concessões.” Realizando, portanto, sua própria teoria. Forjado nas leituras mais críticas e consistentes da melhor poesia, o nosso poeta sabe que as soluções de um poema são fruto de escolhas muito particulares. A culpa do poeta é sempre intransferível. O resto é diluição e falta de personalidade. Neste livro, prevalecem as escolhas inexatas de uma exatidão que se impõe pela artesania, pelo processo de cada verso. Algo que não se rende jamais aos modelos, às facilidades e seduções do lugar comum. O bom poema, nunca se revela por inteiro. Apenas dá pistas para que o leitor possa reescrevê-lo em sua leitura. Eis o tipo de resistência que não oferece concessões.
O que vejo na poesia de Vamberto é exatamente esse combate. Essa guerrilha permanente. Uma outorga às incertezas tão presentes na poesia que realmente importa. A sua capacidade de propor reflexões sobre a metalurgia da palavra está em cada verso, estrofe ou poema. Parece que ele nos convida para encarar o perigo de perder o rumo para descobrir caminhos e descobrir-se em cada estrofe, na solvência de cada verso. Por isso define em “Panfleto”, que “poema é modalidade de combate/ (bate)/ quando interessa o estômago, o intestino,/ o enfarte”. Propõe o poema enquanto campo de batalha onde o poeta avança sem pressa, celebrando as próprias sangrias – olho no significado do alvo.
Vamberto nos convida ao combate fazendo de cada verso um lugar dos seus confrontos. Como em “Às ruas”, onde ele nos diz: “o que esperas para reagir? / cusparada na cara?/ chute nos colhões?/ o olho perfeito perfurado?/ um mamilo dilacerado?”. Sonhador inflamado, como diria Bachelard, o poeta transita suas descobertas num olhar atento sobre o seu tempo. Tempo de guerras, de conflitos, de avanço do fascismo e seus disfarces. Faz de cada poema um paralelepípedo arremessado contra as muralhas da grande farsa que impele seus motivos e multiplica as idiotias massificadas. Será Vamberto um visionário a perceber de longe “o desespero surdo do pânico animal/ ante o estalido do gatilho?” Para Freud, parece que sim. O pai da psicanálise já apontava os poetas como pioneiros dessa estranha racionalidade.
A poesia de Vamberto é isso e muito mais. A cada leitura vamos fechando o cerco, atocaiados pelas boas descobertas. Relendo o seu livro anterior, percebo que se trata de um poeta que também nos remete aos livros, aos grandes literatos que também foram grandes pensadores. Tal um Camus em seus confrontos ideológicos com Sartre. Mais ainda, como um Goethe que nos diz claramente que “O ser humano não pode e não deve descartar nem negar suas peculiaridades; mas pode formá-las e dar-lhes uma direção”. Nosso poeta não renuncia às suas peculiaridades. Sabe que é exatamente aí onde nascem as flores da maturidade num poeta que escreve e pensa sobre o que escreve. É onde o estilo se define enquanto fisionomia emoldurada do espírito.
Difícil fazer afirmações ou definir conceitos numa poesia tão desafiadora. São versos que dialogam com o nosso tempo, mas também ritualizam suas conexões na história do mundo e das relações sociais. No escopo das revoluções evolutivas e das contradições de um existencialismo que permanece como ponto nodal de todas as revoltas. O poeta nos chama para a esgrima da leitura permanente. Sabe que escreveu um livro que não se esgota numa breve vista d’olhos de leitores desatentos. Quando ele diz, por exemplo: “o sórdido colhe/ cianureto no jardim/ pelas manhãs/pra chover chumbo/ em seu sonho de glória,/ para pregar a paz/ com querosene e/ sangue”, pode estar falando de Nero, ou do famoso incendiário brasileiro conhecido como “ogro do cercadinho”.
A memória dos sabores e das nossas cores identitárias. De tudo encontramos neste livro organizado de forma cuidadosa pelo autor. O poema dedicado ao grande poeta Carlos de Assunção, por exemplo, é de uma beleza dolorida. Uma beleza que constata os silenciamentos provocados pelo branqueamento do cânone na terra de Machado de Assis e Lima Barreto. Vejamos o poema “A cor em mim”: “a cor retinta cor/ repisada cor/ que não posso dizer/ / senão que me dói/ – como dói – / saber sua dor”. Nestes versos Vamberto expurga as vaidades de uma intelectualidade amorfa que quase sempre, tanto domina quanto envenena. Enquanto isso, as literaturas indígena, negra e cigana vão rompendo os átrios da mediocridade e da diluição que acomoda interesses editoriais e comerciais pela cor da pele. Afinal, é tempo de afrontar.
Muito poderia ser dito e escrito ainda sobre esta poesia concisa em suas definições. Uma poesia incontida em seus significados e propulsora de um novo olhar para a produção poética brasileira neste pós-centenário da Semana de Arte Moderna. Na verdade, das vanguardas nasceram aprendizados em série. Poemas como “O mesmo refrão”; “Depressão” (oferecido ao grande poeta, Frederico Barbosa); “Bacurau”, “um animal esguichando sangue arde”. E mais, “Ódio e lama”, “Breves”, “Recife”, “Memória”: “o olho intacto mudo,/ vidrado/ duro/ na fotografia” (…) e “Estado de Sítio” nos desperta a atenção em um jovem poeta. Poeta do tempo presente que se fará presente também no breve futuro da poesia contemporânea. Uma poesia complexa, desafiadora e fulminante. Enfim, mais um poeta de possibilidades oceânicas que a Paraíba entrega ao mundo.
Lau Siqueira
Poeta gaúcho radicado na Paraíba
* Prefácio do livro “Piquete Soledade”, de Vamberto Spinelli Jr.
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