Por Krishnamurti Góes dos Anjos (*)
E eis que temos em mãos o livro “Acendedor de relâmpagos”, do escritor Políbio Alves. Nessa nossa pátria amada e eivada de talentos abafados pelos holofotes dos interesses de certos grupinhos que pousam de hegemônicos em matéria de Cultura, é bom que lembremos de que autor estamos a falar. Políbio Alves nasceu em 1941, no Bairro de Cruz das Armas, em João Pessoa. Além de vários livros publicados, tem trabalhos em antologias e periódicos, nacionais e em outros países como Estados Unidos, Alemanha, Portugal e Cuba. É detentor de vários prêmios literários, alguns internacionais, e sua obra vem ganhando o mundo, com textos traduzidos para línguas como o castelhano e o francês.
Em “Acendedor de relâmpagos”, ele apresenta-nos uma pujança criativa de feições épicas. Sua longa poesia é precedida de uma seção onde estão reunidos, a guisa de “Epigrafes”, trechos de livros e obras de vários autores que vão de Montesquieu à Raduan Nassar, de Castro Alves a Eduardo Galeano dentre outros. À medida que vamos lendo, somos induzidos à uma constatação. Não foi escolha simplista de pensamentos dispersos dos autores escolhidos. Há ali uma outra épica. A do pensamento libertário. Vale a pena tecer algumas considerações adicionais. Os três gêneros literários básicos, de acordo com categorização feita na Antiguidade, são: o épico, o lírico e o dramático. Épico é palavra que classifica uma ação heróica, que pode ser baseada em fatos apurados ou inventados. Muitas vezes apresenta uma extensão importante porque inclui elementos de outros gêneros (como drama ou poesia). Chamamos epopéia aos poemas extensos que narram as ações, e os feitos memoráveis de um herói histórico ou lendário. Antônio Lavrador que representa nossa coletividade. Assim a epopéia de Políbio.
Acrescentemos ainda que uma das características básicas do gênero é o afastamento do eu interior e consequente aproximação da realidade externa. A pulsão criadora do artista, não é modulada pela ordem do dia da poesia lírica, a voz do poeta é a voz da história, ele é o cantor do povo, de suas vidas, a par dos versos; é voz que reclama aos cantos um outro status. A história é consagrada pelo instante da criação poética, como sugere Octavio Paz que acrescenta ainda: “todo poema, qualquer que seja a sua índole – lírica, épica ou dramática – manifesta um modo peculiar de ser histórico”.
Em entrevista dada à Humberto de Almeida para o site Crônicas Cariocas, o autor afirmou: “O que importa, a mim, é ler. Trabalhar a textura dos meus livros, incitando-os a desafogar liberdades no ato de criação, sempre. Um trabalho solitário, mas contínuo. Desafiador, eu acho. A meu ver, a literatura, a poesia, tem que abordar a incomodidade, a problematização dos sonhos pessoais ou os anseios de uma coletividade. Não acredito em escritor ou poeta que não seja um confessor social”. E esse confessor social dividiu sua última obra em três partes: “Oráculos”, “Prenúncios” e “Quíron”.
No capítulo “Oráculos” encontramos Antônio Lavrador, epítome completo do homem do sertão sujeito às seculares condições de clima adverso e opressão dos poderosos senhores donos de tudo! Mas ainda assim Antônio Lavrador aplaina “fulgurosa navalha feudal no discurso patriarcal de cobais & tocaias”. Usa a palavra por várias direções, “como faca de dois gumes”. A épica de Políbio Alves, em poucas páginas, nos impacta em face de um amplo painel de nossa história de 5 séculos. Desde: “Agosto de 1501. / Após desembarque invasor / a terra recém-descoberta, / os marinheiros, um a um, / se sobrepõem ao senhor / de uma obsessiva oferta, / arrolada sobre o perfil / extrativista do pau-brasil”.
Eis a gênese crítica de nossa história! Construída a partir de uma invasão onde a norma era a pura e simples ganância. Interessante referir que sobre outro livro – “Varadouro” – do autor, Roselis Batista Ralle, da Université de Reims na França, escreveu: “A obra dê Políbio Alves se diferencia por resgatar uma “heroicidade” que não usa mais a roupagem do passado, posto que implicitamente nosso autor se interroga — e nos interroga — sobre a inadequação do termo ‘herói’”. De fato, a roupagem poética que o autor usa para revisitar o desenrolar da História brasileira é adequada ao vocabulário dos dias que correm, de forma que, para além de ser plenamente compreendida, mostra como, ao longo do tempo, mudaram-se os cenários e intérpretes, mas a peça continua a mesma em requintes agravados, da mais pura crueldade:
“Do topo dessa oligarquia / à cobiça das terras conquistadas, / nossa história tem como franquia,/ os alqueires dos Potiguaras. Afanados. / Assim todo o entorno ao norte, já / denominado de Itamaracá. Após sangrento conflito / por terra e mar, enfim, o restrito / espaço fora afinal desmembrado. E mais, sendo designado / Capitania da Parahyba.”
Mais adiante lemos:
“Por essas terras dos Tabajaras / aconteceram coisas inimagináveis. / Encarapuçados rondam, rondam / rondam e metralham lavouras / ateando fogo nos canaviais.”
A cantilena do “Oráculo” rememora a atuação da “confraria mercantilista dos gestores”. Deu, e continua dando, o tom de nossa gravíssima questão fundiária. Base mesma de nossa injusta formação: “Das capitanias / Hereditárias / à historiografia / da Reforma Agrária, / nosso solo permanece espólio / do investidor estrangeiro”.
Por isso que “O tempo não basta / quando a corda insiste / numa usura tão vasta / ao sufocar o pescoço em riste”. Sempre, o medo mediante lágrimas, o desespero, o grito acuado nos sertões brasileiros. O grito acuado e “Galopante. / Bactéria evolucional que se aviva / numa lâmina afiada na garganta. / E mais, a dor imponderável. / Exatamente na perspectiva, / dos amigos, da família dos mortos, / esclarecendo a evidência irreparável / das torturas e dos assassinatos.”
Observe-se a sequência significativa de palavras muito conhecidas atualmente: “franquia”, “encarapuçados” “metralham” “canaviais” (a ganância de pau-brasil de 1501 transmutou-se), “gestores”, “Bactéria evolucional” e “torturas”.
O capítulo “Prenúncios”, é ainda mais interessante porque o fio narrativo parece truncado, disperso, telegráfico a sugerir a confusão reinante atualmente. Senão Vejamos: “amordaçar com sussurros / até então a palavra aguerrida”. “Entre a vertente operária e o trabalhador do campo / floresce a embolia agrária / dos levantes transgredidos // sob o açoite mais amplo / persiste / o discurso irradiante / no desafogo dos gemidos // Oh! / indômito canto fecundo / neste timbre instigante / pleno enfoque do mundo”.
Pode haver leitor desavisado por ignorância inata ou pua e simples conveniência, que lance a pecha de texto anacrônico a esse grande livro(de apenas 108 páginas). “Acendedor de relâmpagos” se supera em atualidade. Muito atual, atualíssimo. É ter olhos para ver, é ter olhos repetimos, para ver no que vai se transformando o povo brasileiro:
“Há flutuante escória (grifo nosso) / do insulto e do estorvo / se debatendo na história / irreversível de um povo”.
“a dança do corpo atiça / o gingado das esporas / numa perversidade movediça // Ah! esplendorosa alegoria / a tatuar a pele do homem agora / na pluralidade da tirania”.
Essa a nossa “bastarda alforria” em “hora presente / selvageria irresoluta” e “barbárie operante”, tudo “sob tessituras das oligarquias / o intelecto da megalomania” e uma “fonte perene de conchavos”. O que grassa pelo país afora é o “conjuntural degredo” que “pulveriza a bravura do homem”.
Que dizer do último capítulo? Quíron (Na mitologia grega, Quíron é um centauro, considerado superior por seus próprios pares. Ao contrário do resto dos centauros notórios por serem bebedores contumazes e indisciplinados, delinquentes, sem cultura e propensos à violência quando ébrios, Quíron é inteligente, civilizado e bondoso). Este capítulo contém 6 poemas de esperança, onde “O poeta resgata o pré(texto), / da impactante idiossincrasia / sobre o inusitado da poesia.” Para, quem sabe, reinventar a paisagem “Na fúria das palavras”. Destaque para o poema “Amanhecência” sobre o qual, Linaldo Guedes escreveu no Prefácio da obra: “É síntese da força, da importância, da grandeza épica de Antônio Lavrador”.
Políbio Alves, como diria Mallarmé, intentou dar “um sentido novo às palavras da tribo”. De tal modo, que a sua criação na vertente épica, naturalmente vinculada ao presente histórico do poeta, reverberará o passado para alcançar um lugar no futuro. Esta, nos parece, ter sido sua principal intenção.
A Arribaçã Editora criada recentemente pelos jornalistas e poetas Lenilson Oliveira e Linaldo Guedes com sede nos altos sertões da Paraíba, mais precisamente em Cajazeiras, não poderia dar início á suas atividades editoriais de forma mais auspiciosa. Publicar obra da qualidade e relevância que possui “Acendedor de relâmpagos” de Políbio Alves, indica uma linha editorial oportuna nesse gravíssimo momento que atravessamos. Que a arribaçã continue publicando vôos desta natureza. Com efeito; são dignos de nosso mais franco aplauso o autor e os editores.
Livro: “Acendedor de relâmpagos”, Poesia de Políbio Alves. Editora Arribaçã, Cajazeiras – Paraíba – 2018, 108p. ISBN 978-85-90679-1-9
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(*) Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor, Pesquisador, e Crítico literário. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos e Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 27 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional – Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações, dentre os quais: Literatura BR, Homo Literatus, Mallarmargens, Diversos Afins, Jornal RelevO,Revista Subversa, Germina Revista de Literatura e Arte, Suplemento Correio das Artes, São Paulo Review, Revista InComunidade de Portugal, e Revista Laranja Original.