Cassas: poeta universal cantando sua aldeia

Por Linaldo Guedes

Nem sempre a melhor forma de conhecer uma cidade – suas histórias, lendas, ritos e mitos – encontra-se nos livros de história. Mais do que os historiadores, são os poetas os melhores tradutores da alma de uma cidade. Àqueles podem até traduzir com fidelidade a arquitetura, a formação histórica, a geografia, a demografia. Estes primam por aquilo que não pode ser encontrado nos compêndios escolares. Aquilo que só os poetas podem captar e que jamais será traduzido de forma objetiva. É o que o poeta Luís Augusto Cassas faz em “Quatrocentona: Código de Posturas & Imposturas Líricas da Cidade de São Luís do Maranhão”, publicação da Arribaçã Editora com capa de Luyse Costa. A obra é um roteiro sacro-profano-boêmio-cultural-histórico pelas ruas dessa que foi a única cidade brasileira fundada por franceses, mas que é a que fala o melhor português do país. Nossa Atenas Maranhense!

Imaginemos “Quatrocenona” como uma ópera poética, com abertura, música, recitativo, diálogos, coro e árias. É o que Luís Augusto Cassas nos apresenta nas 208 páginas dessa obra que reúne poemas de nove livros publicados anteriormente, além de alguns inéditos. Melhor roteiro não há para quem quer conhecer a magia e os mistérios de São Luís do Maranhão.

Dividido em nove capítulos, o livro abre com “A Cidade Aberta”, onde o poeta começa exortando a lavar a cidade, ninar a cidade, amar a cidade. São Luís é uma cidade barroca, talvez por isso despida de segredos, com seus ritos religiosos: “minha capela sistina/ teresa de calcutá/ se a cidade fosse minha/ não a deixava tombar”. E a cidade se abre através da devoção em sete igrejas de suas redondezas: Desterro, Sé, São Pantaleão, São João, Carmo, Santo Antônio e Remédios. Também através dos discursos perdidos nos becos ou dos sermões de Vieira, que chegou a pregar em São Luís.

Em “A Cidade Relembrada” o poeta fala de seus outros pares, como Nauro Machado, José Chagas, Ferreira Gullar, Gonçalves Dias. E de outros nomes: Tribuzzi, Arthur e Aluísio Azevedo. Tudo servido com arroz de cuxá e peixe pedra “em restaurante arruinado”. A poesia de Luís Augusto Cassas tem o tom de exaltação na maioria dos versos sobre sua São Luís, mas não falta o lirismo que move todo bom poeta, como no belo “O Homem sentado na Praça João Lisboa”, que “já pensou em soluções coletivas/ para a cidade e a humanidade/ (agora idealiza pombos na mão/ como se estivesse em Veneza)”. Afinal, como faz questão de lembrar mais adiante, existem duas cidades: uma que sente saudade, a outra piedade; uma oficiosa, outra oficial. Com ecos da cidade-fantasma nos parelepípedos de suas ruas.

“A Cidade no Varejo & Atacado” mostra que o poeta não quer o Tejo, o rio mais belo do mundo no dizer de Fernando Pessoa. Mas quer o rio que por correr em sua aldeia é o mais belo do mundo. Assim como as meninas, as prostitutas de São Luís, que psicanalisam e “depois devolvem os clientes/ amaciados e quentes/ à fauna-faina da vida”. Se não quer o Tejo é porque a cidade tem seu próprio mar: deprimido, humilhado, sucateado, mas o mar de São Luís emaranhado. Ou, então, outros amores, como no belíssimo “Invenção da Chuva”:

“a vida inteira amei a chuva

como platão amava os elementos

e nietzsche o espírito do vento

 

protegia-a da fúria dos relâmpagos

deitada em lençóis de aquecimento

aberto exemplar de o ser e o tempo

 

na horizontalidade de suas curvas

o abajur nos acendia os corpos

incendiária musa em novecento

 

partia úmida e em contentamento

lágrimas nas vidraças a mona lisa

no verão do meu desfalecimento”

 

No capítulo “A Cidade & a Alma Ensolarada”, impõe um ritmo interessante no poema “Compromisso”, dedicado a Bandeira Tribuzi, e a gente fica igual ao eu-lírico, com vontade de seguir no barco que segue para Alcântara. O mesmo ritmo (o que seria da poesia não fosse o ritmo) o leitor encontra em “A casa dos espíritos”, a falar de duas Marias – uma cheia de fé, outra comunista. Ou nos poemas dedicados a Zeca Baleiro, Gullar, Rita Benneditto e a outros personagens da ilha. Já “A Cidade Transfigurada: O Véu & a Máscara” é todo ele dedicado à “Édipo em Athenas”, um diálogo temperado de ódio que o amor engoliu no sódio, conforme tradução do poeta. Na “Ilha Dançada”, o ritmo de São Luís nas homenagens ao Boi ou ao tambor de crioula. Em “O Dono do Mar” as homenagens chegam ao político José Sarney e a São José do Ribamar – um colecionador de santos; outro pescador de fieis: “na verdade o que é a política/ senão a arte dos sinais?/ em sua inquietação mística/ o povo elege os cardeais”, provoca, numa clara alusão às expectativas em torno de santos ou políticos. Mas o que seria de uma cidade sem suas lendas? Cassas fala disso em “A Cidade & o Fantasma Romântico”.

Luís Augusto Cassas está entre os melhores poetas em plena atividade no Brasil. São mais de vinte livros de poemas numa trajetória que começou no início dos anos 1980. A paixão por São Luís transforma sua poesia em única, depositária de um legado que poucos poetas no Brasil de hoje praticam: a tal história de ser universal cantando sua aldeia. Afinal, como diz em “O Renascimento da cidade”

“a cidade

não precisa do sol e lua

a iluminá-la

 

sonho e loucura

são seus ofícios permanentes

e a poesia”

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