Conheço Rosângela já tem um bom tempo, inclusive já resenhei livro seu anteriormente, e acompanhei de perto o doloroso processo da perda de sua irmã. Vivi a empatia de quem também tem uma irmã-melhor-amiga, como é meu caso. Certo dia, Rosângela relatou em seu perfil de Facebook que havia sonhado com sua irmã e se sentia triste porque ainda havia muito a dizer.
Não me surpreendeu quando, um tempo mais tarde, Rosângela anunciou seu livro novo, “O coração pensa constantemente”, onde a narradora tem como principal objetivo manter viva a memória da irmã falecida.
No livro, a narradora fala de Rubi, sua irmã mais velha, deixando claro desde o começo que o nome verdadeiro da moça não é esse, a escolha se deveu à preciosidade da pedra, mas desconfio, por conhecer a inspiradora da personagem, que seus cabelos vermelhos tenham exercido alguma influência. Rubi é uma moça que não teve uma vida nada fácil, mas perseguiu seus sonhos, sendo o exemplo ideal para essa narradora que tinha em Rubi o espelho de quem ela queria ser.
No aspecto narrativo, Rosângela usa uma técnica muito comum em um livro de lembranças e bastante usado na ficção, que é a não linearidade cronológica, uma vez que ela vai e volta livremente no tempo, como se fosse efetivamente seu fluxo de memória, contando, a cada capítulo, aquilo que lhe veio à mente naquele momento. A passagem não linear do tempo também não obedece uma fórmula pré-pronta de passado-presente, porque seu retorno às histórias passadas igualmente foge à cronologia; temos uma Rubi adolescente num momento, moribunda em outro, criança em outro, e assim vai se construindo essa teia de memórias da narradora-autora.
Sim, narradora autora. Rosângela não tenta em momento algum fazer com que a história se venda como uma ficção – o que inclusive é bastante honesto com o público – trazendo até pedaços de sua rotina nesse período de pandemia, em seus diálogos internos com essa irmã que certamente jamais imaginaria uma pessoa tão livre como Rosângela presa em casa por meses. Esse foi um risco que Rosângela assumiu, uma vez que livros de memórias geralmente só despertam o interesse quando provindos de uma pessoa extremamente célebre, uma celebridade muito famosa ou uma figura histórica.
Independente do que pode pensar o público, Rubi é, para Rosângela, a maior das celebridades e sim, uma figura histórica. Ao longo dos capítulos, dos mais triviais aos mais impactantes na história dessas duas irmãs, a admiração e o amor de Rosângela por Rubi (ou, na vida real, Edna) é escancarado em cada página. Mesmo que Rosângela não faça uso de hipérboles poéticas, consegue transmitir com perfeição o sentimento que permeia toda essa jornada e que não findou com a passagem de Rubi, pelo contrário, além do amor imenso, criou também a saudade incurável.
Foi esse amor e essa saudade que moveram Rosângela a escrever o livro. Isso fica ainda mais claro quando ela, por vezes, esquece o público que está lendo a obra e direciona sua narrativa para a irmã. Esteticamente é uma quebra de narração bastante interessante, já que muda, mesmo que sutilmente, o ritmo da leitura. Do ponto de vista da própria história, é emocionante, porque sim, naqueles momentos Rosângela está usando da literatura para conversar com a irmã, e isso vai muito além de qualquer regra ou padrão, isso é amor.
Não posso dizer se o livro é totalmente biográfico ou uma auto-ficção, mas é inegável que ela tem seus motivos para julgar que a história merecia ser contada.
Não conheci Edna, mas tenho certeza que, onde quer que ela esteja, está muito orgulhosa de sua irmãzinha.
O coração pensa constantemente
Rosângela Vieira Rocha
Arribaçã: Cajazeiras, 2020
198 páginas
(Maya Falks é escritora gaúcha. O texto acima foi publicado no site “Bibliofolia Cotidiana”: https://bibliofiliacotidiana.wordpress.com/)