O honroso convite para escrever a apresentação desta coletânea dos poemas lidos nas reuniões virtuais mensais de 2022, do projeto Encontro Poético com Chris Resplande, em parceria com o Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás e o apoio essencial da museóloga Rossana Klippel, me reportou a uma crônica que eu tinha escrito em maio de 2022 para o jornal da ANE-Associação Nacional de Escritores, denominado Poesia para os meus ouvidos: “Quando, em 2017, eu me decidi a publicar meu primeiro livro, um livro de poesias, em um ritual de passagem que exporia meu momento íntimo ao espaço público, minha certeza de que a oralidade dos poemas deveria sempre ser apresentada paralelamente à sua grafia provocou a produção de um disco anexo ao volume impresso”, com a gravação de todos os poemas do livro, por leitores amadores e profissionais. Termino o texto dizendo que “… a poesia como forma de arte é anterior à escrita, que lírico é música, é melodia e é ritmo. Tudo em harmonia”. A minha convicção de que poesia e música são inseparáveis, provocada talvez pela minha intimidade de uma vida com a leitura de poemas em voz alta e com o estudo do piano, tem sido reforçada com o tempo e com a experiência.
Lembrando que Eric Havelock diz que “Um poema é mais memorizável que um parágrafo em prosa; uma canção é mais memorizável que um poema”, me deparo com a estratégia de Chris Resplande, que reflete a própria história da literatura escrita que tem suas raízes na poesia oral: o registro oral veio antes do registro escrito. Assim, quando Chris coloca, nos encontros virtuais, poetas em frente ao público para que exponham seus poemas pela oralidade, ela vai além dos simples sons de vozes diferentes, seus timbres, tessituras, intensidades, entonações, tonalidades, extensões, ritmo, pausas, e alcança significados em olhares, expressões, gestos, posturas, que descobrem os contextos em que se encontram os versos e como se exprimem os trovadores.
E entre os autores convidados por Chris vários tem intimidade com a comunicação oral e visual com o público. Na live de que participei, por exemplo, meus excepcionais colegas de poesia, o poeta Arthur Gomes é um homem de palco, ator e performer (“o poema pode ser/um beijo em tua boca/carne de maçã em maio/um tiro oculto sob o céu aberto/estrelas de néon em vênus/refletindo pregos no meu peito em cruz…”, em Jura Secreta 33) e a poetisa Michaela Schmaedel é editora do podcast Poesia pros Ouvidos (“… No Tibete ou aqui na cidade/de São Paulo/O mesmo calor infernal/A mesma desilusão/O mesmo trabalho pesado/(nesta tarde, desisti da poesia”, em Zen).
Cito, também, José Luiz do Nascimento Sóter que criou e apresenta o programa Poesia da Hora, na TV Comunitária de Brasília (“existe uma briga/entre eu e mim/que assisto de fora/pra assumir o vencedor”); Vanessa Oliveira com seus vídeo-poemas e seu podcast Texto Partido em formato de áudio (“Recomendo uma palavra-vento/Capaz de dissipar qualquer nuvem carregada/siga com uma palavra indecente que prefira/dormir ao lado de uma saudade nua”, em Como escrever bilhetes de amor); Walacy Neto que “promove saraus em Goiânia com o intuito de tirar poetas da gaveta” (“encostar num simples botão/iniciar a atração de dois planetas/que não se encontram/enquanto pensa que a ausência/faz mais que separar/ao sumir com as lembranças/ela também leva as dores de cabeça”, em Fatal). E ainda Jazz Oliveira, “que descobriu a poesia em canções” e participa do Festival de Poesia Falada da Academia Goiana de Letras (“Vou sair por aí sorrindo /Mesmo que pareça louca/ Sair por aí declamando/Mesmo que não seja poeta/Por aí sorrindo e declamando/Feito poeta louca…”, em Poeta?). Lea Paz, criadora da página “Poetizar é preciso”, “na qual compartilha seus poemas e manifestações artísticas de artistas variados” (“A roça que habita em mim é mulher/Essa roça é minha mãe:/Lenço amarrado à cabeça/Face avermelhada, pingos de suor/Dói, a roça que habita em mim…/Ela é carne de mulher, esforço e sangue/Mas, também, a roça que habita em mim/é fartura/É a generosidade feminina jorrada/No útero da mãe terra…”, em A roça que habita em mim). E a própria Chris Resplande, com seu Encontro Poético e sua página @chrisresplande (“Então a poesia voltou/a se desenhar/e o desenho se verbalizou;/escutei com os lábios, /retribuí em alta voz/o que em silêncio/ouvi dos passarinhos:/- Volte, volte, volte.”, em Esboço.)
Assim, cada Encontro Poético reúne um coral de vozes cuja expressão oral agora se transforma em uma antologia na grafia dos sons poéticos. Os teleouvintes, que abriram seus ouvidos e seus olhos para a expressão oral nos colóquios virtuais, vão agora abrir suas mentes e seus sentidos de leitores solitários para absorver, da palavra escrita, a imensa e diversificada riqueza de vozes que a regente poetisa, Chris Resplande, conduziu com arte, sensibilidade e doçura.
E eu me pergunto, o que leva uma jovem poetisa a divulgar literatura poética em lives mensais e em antologias? Como consegue esta harmonia entre tantas diferenças? Uma harmonia que começa com o equilíbrio entre o número de poetas homens e poetas mulheres, entre distintos estilos e variadas temáticas, que se exprimem em momentos sonoros que se soltam das letras impressas ora como sopros, ora brados, ora suspiros, ora protestos, ora risos, ora prantos.
Harmonia entre poetas das mais diversas profissões, como Itaney Francisco Campos, escritor, poeta, contista magistrado, desembargador do TJ-GO e presidente do TRE (“No mundo tudo evolui ou involui,/ao sabor da vária perspectiva,/mas ao fim tudo resta ao nada,/a pátina, às cinzas, à mera lembrança,/se houver,/se algo restar da brisa./…/As traças cuidarão da biblioteca/que amamos,/dos poemas que registramos,/das palavras, vazias ou não, de tudo.”, em Vanitas).
Entre poetas consagrados, como Elizabeth Caldeira (“Quero ser/a bola que te embala o ânimo,/o mel que te adoça o beijo,/a língua que te faz a fala,/e o seu som, que encanta almas./…/Quero ser/o rio que te banha o corpo,/a palha que te guarda o sol,/a água que te bebe a sede,/e a sombra que te segue sempre.”, em Tímida Obsessão). Como Salvino Pires Sobrinho (“Poeta me encontrei tarde/descrevo o por do sol/mas desconheço o nascente/canto o som do crepúsculo/sem o contraste da alvorada/carente de referências/perdi no tempo meu espaço/e me dei conta que passo/sem ver a brisa da manhã/sem ter juízo formado/nasci filho do ontem/o meu presente é passado”, em Crepúsculo).
Entre poetas jovens como o adolescente Estevão Freitas, defensor da natureza do Brasil na adorável audácia de versos como “Se existiu a vanguarda/do romãtismo, por que não criaram/a fase do pitanguismo? A literatura não dá sossego…/Tirei as roupas da brochura/e a gravata da tipografia…”, em Lições de Comunhão.
Entre poetas que começaram a publicar mais tarde na vida, como Zanilda Freitas (“Nas espirais do tempo,/envoltos no aconchego/de incontáveis auroras e ocasos,/os corações dos homens/giram em descompasso/no direito e avesso dos sentimentos/…/E nesse torvelinho, esvaem-se sonhos e ilusões!/As espirais envolvem e conduzem corações cansados, para o deserto do nada/no grande voo de liberdade./ Mesmo assim, em meio às espirais do tempo/a alma do poeta torna-se imortal.” em Espirais do tempo), e como eu, (“Rebaixe/Amasse/Reduza a pó/mas lembre-se/de que pisado pisoteado/reduzido/até o pó se levanta/basta um sopro/(ou o ar de um sorriso…)”, em Sob a sola do seu sapato).
Entre talentosos poetas esparramados nas diversas matizes culturais e geográficas do Brasil, como Linaldo Guedes, paraibano, jornalista, graduado em Letras, mestre em Ciências da Religião, acadêmico e editor, nos falando de sua terra em (Cabo Branco e outros mares): “trago medos da barreira de cabo branco/saudades de barracas e agueiros/meu pai beliscando uma agulha/o menino que corria nas areias do sol/trago memórias do sal de tambaú/e do imponente hotel, cartão postal da maresia/lembranças do mercado, dos bares, da lua/o menino lambendo os dedos afrodisíacos/trago a solidão escura da manaíra/e o descampado vazio de seu calçadão/cantigas do nada para os pescadores da vida/cantigas de espumas nos pescados dos pratos…”.
Entre poetas experientes no processo editorial como Cristiano Deveras (“Quem a deixou sair sem as chaves/quem lhe abriu as portas em pares/quem tomou-lhe o meu endereço/o nome do lugar/onde vivo apodreço/em minha sala-sepultura/quarto-caixão/copa-cova/solidão…”, em Dos dias em que o céu desaba).
E entre poetas mulheres, Maria Abadia Silva é voz da maternidade na consciência da dor individual e na herança da dor coletiva, (“Assim, enterrei minh’alma/Naquele dia, no túmulo de minha filha./À luz que se acendia/Até que se apagasse/A água se diluísse e secasse/Foi me invadindo uma pele vegetal/Reverdecendo-me/Com a voz do passado/A voz dos mortos que falam/Com as mulheres do silêncio/E das matas, com a vida/Entre as pedras, e espinhos/O olhar à frente, reconhecendo as/Mulheres antigas que me habitam/Velhas sábias, perdidas, mortas/Filhas mortas e vivas dentro de mim/As filhas que crescem em meus braços.”
E então, haveria outro elo ligando estas vozes grafadas nos símbolos da escrita, além do talento poético? No desfrutar dos versos me pareceu importante a recorrência, entre os autores, de reflexões sobre poesia em um debruçar sobre o ofício poético pela força da metalinguagem.
Ademir Hamú define poesia em Desencanto, “Há muito que não largo a raiz da vida./Aprendi que a poesia/é o suor das forças despendidas no sustento da flor./Seria inútil meu gesto solitário/Espalhado nas ondas deste mar/De navegantes miseráveis e sem notícias./A minha cantiga/Brinca debruçada na janela da emoção,/Onde a fuga é cega e passageira./…/ ”.
A função social da poesia é defendida por André Giusti em Poema aparentemente sujo para almas lavadas, “Eu não acredito na poesia/inseminada in vitro/na poesia/asséptica curvada lisa fria/feito madona talhada no marfim. … Eu só acredito na poesia que é vômito na madrugada em cima dos postes/ancoradouros de bêbados/Que é escarro contaminado na emergência lotada da periferia.”
Em Poema nu à base de sopros, Gilson Cavalcante (cuja partida recente nos deixou profunda saudade) fala de diferentes roupagens para um poema: “Eu quis fazer um poema oral…/Um poema de sotaque áspero…/ Um poema sussurrado…/Um poema nu, à base de sopros/ para o solo de trombone de vara./…/Um poema ao ponto da vertigem/verticalmente pendurado por um fio/de cansaço na voz./O poema ficou mudo/para a horizontalidade de nossa alma/estendida no crepúsculo da primavera.”
É contundente a admissão da força do ímpeto poético em Às vezes, de Márcia Maranhão De Conti: “o rastro das patas pelo quarto/um resto do cheiro selvagem/o corpo exausto/se eu visse o espelho/veria os olhos fundos/e os ares de vigília/um quê de caça frustrada/amor que não sai do flerte/e consome a vida/o poema, às vezes, esse bicho.”
Mariana Vieira, letrista filiada à União Brasileira dos Compositores – UBC e idealizadora da Linho & Letras Arte em Versos, coloca as gentes e o mundo dentro das pedras e nelas encontra a poesia, em Dentro desta pedra: “Dentro desta pedra há poesia./Há melodia entre os poros;/há, entre os seus espaços de rotina,/alguma poesia./Nas tormentas da sua sombra,/na soberania do seu silencio,/há alguma poesia./Há, dentro desta pedra,/um pingente para o teu colar de certezas./…/Dentro da pedra há um povo/a prosa das histórias que emergem das camadas das suas linhas,/…/Pelas pedras, dentro delas, há poesia…/Entre a geografia poética dos seus espaços,/…/Há palácios dentro de cada pedra./Uma mulher nua e suas fortalezas,/ou um guerreiro antigo, absurdado./As perplexidades das suas riquezas,/a inércia da mobília que me acolhe,/silente,/Para que eu possa ler,/com a minha pele,/a sua poesia.”
A interferência do tempo na produção poética é descrita por Simone Athayde em Sobre livros e o tempo, um paralelismo (ou antagonismo) entre a atração pela literatura (a leitura e a escrita) e as funções domésticas da mulher: “Tanta coisa que eu queria fazer/E não faço!/Tanto me prende à vida medíocre,/Este laço./Um desespero desta vida pequena/Tão rápida!/Um despertar aguardado que não vem,/Essa fábula!/Cora fazia poemas entre os intervalos do tacho/Eu faço poemas entre faxinas e o cansaço./A poeira que assenta sem dó/nos móveis da casa,/alguém precisa limpar a bagunça/Manter a calma1/E os livros amontoam-se nas estantes,/Não lidos!/Os personagens e as histórias me chamam/Tão vividos!/Ainda largo tudo e fujo de mim!/Quem sabe assim./Não me sobre um tempo?”
E, finalmente, e tão inevitável, a ligação da poesia e o amor no poema Nas águas da contramão de Ronaldo Ferreira de Almeida: “Não me fiz de rogado/Eu sempre quero nadar na contramão de tudo que seja não amor./Acredito na brevidade de um sorriso, mas também na sua potencialidade./Qual o sentido da alteridade dilacerante e mordaz?/Eu só me percebo, quando percebo o Outro no seu sentido pleno./Não cabe a medida dos versos e de egos./Um dia, todos nós só seremos um nome nas reminiscências de outrem/ou uma foto engavetada./Por que não amar antes que seja tarde?/Escreva um poema; faça um arco nascer na íris de alguém./Ame, se decepcione, mas nunca deixe de amar./A cada dia um vento gelidamente quente beija a nossa face/Isto é o suficiente para uma profusão de sonhos alados./Ame e desarme-se de parecer démodé./Um dia, vi um poeta andar na chuva, como se fosse sol ao meio-dia…/Ele caminhava com as mãos no bolso/e era inundado pela vida./Ele ria de si mesmo./E talvez estivesse pensando: eu aprendi mais uma variante do amor!”.
Obrigada, Chris Resplande, por Plural – Poetas e Poemas, este coro de vozes, amparado pela arte gráfica da capa de Rosy Cardoso, o tronco e suas ramificações, uma bela imagem da prolífera difusão cultural de Encontros Poéticos, agora, uma coletânea que convida o leitor à intimidade com uma pluralidade de emoções e pensamentos que darão voz a seu coral particular.
Sandra Maria
Goiânia, março de 2022.
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O livro “Plural: Poetas e Poemas”, de Chris Resplande, pode ser adquirido AQUI