DE OLHO NA ESTANTE: A Morte, às vezes, fala com voz de poeta

Por Johniere Alves Ribeiro

 

“Quando a indesejada das gentes chegar (não sei se dura ou caroável). Talvez eu tenha medo. Talvez, sorria, ou diga: – Alô, indubitável! O meu dia foi bom, pode descer noite. (…) Encontrará lavrado o campo, a casa limpa. A mesa limpa. A mesa posta. Cada coisa em seu lugar”. Me deparei com esse poema, “Consoada”, de Manuel Bandeira ainda na adolescência. O li em um livro didático. E já tinha visto a Morte face a face, ao menos uma vez de modo evidente. Neste momento no qual escrevo, a Indesejada tentou contato comigo mais duas vezes: o convite veio por meio da Covid-19, quase o recebi; e outra após a pandemia, quando o carro em que viajava para ministrar aulas, junto a um colega de trabalho, do nada, em pleno movimento, pegou fogo. Contudo, não quero acreditar que sou ruim para “morrer”. Talvez não fosse a hora.

Há quem diga que o nosso fim esteja em algum lugar marcado. Enquanto outros batem na boca ou na madeira em citar o nome: morte.

Será que ela tornou-se minha companheira, tal qual foi a de Manuel Bandeira?

Brincadeira.

Desejo muito, que ela não leia este texto. Que ela esteja ocupada, quando o terminar e quando o publicar.

Mas, paradoxalmente, “a Morte não é algo que nos espera no fim. É companheira silenciosa que fala com voz branda, sem querer nos aterrorizar, dizendo sempre  a verdade e nos convidando à sabedoria de viver. A branda fala da morte não nos aterroriza por nos falar de Morte. Ela nos aterroriza por nos falar da Vida”, Rubem Alves.

O certo é que, de alguma forma, o fim humano chegará. Lembro aqui Vinícius de Moraes: “A morte é a angústia de quem vive”. Isso também não se pode negar. Não é?

Você leu até aqui e viu que a problemática da Morte é algo que nos incomoda, por consequência deixa uma pedra dolorosa no sapato da sociedade. Esse é o tema central do novo livro da escritora e psicóloga Lucione Andriola: “Quem morre vira estrelinha? E outras histórias…” , Arribaçã (2022).  Nele a autora procura demonstrar as mais diversas formas de noticiar às pessoas os impactos, material e imaterial, causados pela morte em quem fica preso na vida. Mas, leitor, não busque nessa obra um compêndio ou um conjunto de receitas prontas e acabadas para amenizar a recepção da informação que alguém teve sua existência finalizada. Andriola também narra como temos dificuldade em conversar sobre esse tema, principalmente com as crianças. Assim, ela nos revela que nem sempre estamos com a “mesa posta” ou “o campo lavrado” e “que o dia esteja bom”.

Daí a nossa sociedade, em seus processos civilizatórios, estabelecerem lugaridades simbólicas para projetarem “os campos santos” fora da concretude terrena. Por isso, “o fim da vida humana, que chamamos de morte pode ser mitologizado pela ideia de outra vida no Hades ou Valhalla, no Inferno ou no Paraíso”, Nobert Elias. Tais construções formam telas de abrigo, para o enfrentamento limite da experiência humana – seja na vida, seja na morte. De modo que ao cabo o que nos resta é que nascemos grávidos da morte.

“Quem morre vira estrelinha? (…)” é uma obra necessária. A leitura de Lucione Andriola, ante as narrativas por ela recebida em consultório, é recheada de sensibilidade, de humanização. Não há julgamentos ou descartes de dores, tudo é acolhido. Assim, seu livro não tem como fim em si a resposta para a pergunta título. A leitura da autora, acima de tudo, é ética. Tudo montado com uma linguagem simples por meio do gênero relato, um gênero fácil de hibridizar-se a outras modalidades de escritas que performam o texto de Andriola. De modo que sua montagem se estabelece na fluidez, marca preponderante de uma conversa, espinha dorsal da obra que o leitor tem em mãos.

Além disso, estamos diante de um livro escrito por uma psicóloga que faz questão de eximir dos freudismos ou dos lacanismos; a autora nos conduz na imersão do tema a que se propôs debater. Todavia, também não se deixa esquecer de embasar sua fala em um arcabouço teórico.

Digo que a escrita de Andriola segue a esteira semiótica de um abraço, de uma conversa amigável: “Uma coisa é fato. Se os adultos falarem, as crianças vão criar a sua própria realidade sobre a morte, seja em forma de fantasias, seja em forma de sintomas” ( Andriola, p.23).

 

“Não existe resposta certa ou errada, mas deverá existir sempre a verdade no que se acredita, pois se a criança  perceber titubeios, as dúvidas e as mentiras, se sentirá enganada. Não adianta encenar uma resposta cheia de crenças religiosas se no íntimo você, adulto, não crê. E não tenha medo de ser ingênuo se crê.  A criança está ali na sua frente irá acreditar e entender suas palavras se elas vierem carregadas de verdade” ( Andriolap. 53)

 

“Quem morre vira estrelinha?” é um livro que está dividido em oito capítulos, bem equilibrados entre si. Curtinhos. O que torna confortável para o leitor desenvolver sua leitura. Pode até parecer que será uma leitura rápida, contudo a densidade do tema nos obriga paradas, reflexões, sustentação de fôlego. Um ufa! Feito com profundidade. E nossa mão nos guia para a próxima página incontornável, tal qual a própria concepção do nosso fim. Acredito que foi uma estratégia que se adaptou bem ao contexto da proposta desenvolvida pelo texto da autora.

Quero, neste momento, chamar a atenção para as epígrafes que abrem cada capítulo. Sem dúvida, um capítulo à parte no construto do livro. O que demonstra uma pesquisa incrível por parte da autora para encaixar cada uma na maquinaria da escritura textual da obra. Creio que o leitor irá se deleitar com elas, já que as mesmas cumprem seu papel de nos conectar com o assunto que as páginas seguintes irão nos ofertar. As epígrafes constroem linhas paralelas para  fazermos caminhos cristalizados no que tange o fim humano.

Chamo ainda a atenção para sexto capítulo, o mesmo remete ao título do livro: “ Quem morre vira estrelinha?”. Nele se agudiza o tema e a relação deste com o mundo infantil: “A morte expõe a fragilidade humana, a sua finitude e quando mais cheios de negação e incompreensão diante disto, mais difícil será a conversa”. Nesse impasse, entre negação e incompreensão, emerge a metáfora do “virar estrelinha” quando se morre. Metáfora que, segundo a autora, não se sustenta por tanto tempo, como imagina os adultos que a professam. Pois, ela é muito genérica e pouco diz realmente algo sobre a morte.

E se tivéssemos a notícia de que “no dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, (…) sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada (…)” Esse é um trecho do romance “As intermitências da Morte” de José Saramago e que também nos demonstra o fato de que a existência humana deve seguir seu fluxo natural do fim. E que a morte é necessária como uma sequência da nossa existencialidade.

E é diante da plena consciência do fim que o DE OLHO NA ESTANTE indica “ Quem morre vira estrelinha? E outras histórias” de Lucione Andriola (ARRIBAÇÃ, 2022) como uma leitura considerável.  Até porque a “Morte nunca fala sobre si mesma. Ela sempre nos fala sobre aquilo que estamos fazendo com a própria Vida (…) A Morte fala com a voz de poeta”, Rubem Alves.

 

* Johniere Alves Ribeiro é professor-doutor e resenhista parceiro da Arribaçã. O texto acima foi publicado na seção “DE OLHO NA ESTANTE”, em seu perfil no instagram: @johniere81

 

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O livro “Quem morre vira estrelinha? e outras histórias: Sobre os medos e tabus dos adultos de falarem de morte com crianças”, de Lucione Andriola, pode ser adquirido AQUI

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