Por Johniere Alves Ribeiro
“Coração Arlequim” é o título do novo livro da veterana poeta Márcia Sanchez Luz. Uma obra que nos coloca entre temas e formas que hibridizam aspectos da contemporaneidade mais cotidiana do leitor, tal como a liquidez da vida moderna; quanto elementos formais, a exemplo dos tradicionais sonetos, trovas e haicais, bem como da liberdade dos versos incentivados pelas poeiras de 1922.
Outra soma nos chama a atenção em “ Coração Arlequim” o título e capa.
Quanto ao título me veio à mente a remissão direta a Arlequim. Personagem que surgia nos intervalos das Commedia Dell’arte italianas. Figura que ficou incorporada ao imaginário popular que acabou se conectando ao espectro cósmico do carnaval. No sentido restrito, a festa de momo brasileira. Mas no sentido do qual teorizou Mikhail Bakhtin, que defende a carnavalização como a inversão da pirâmide social. Desta maneira, Arlequim seria um exemplo disto, pois ganha posição de destaque tanto na sociedade como em nosso campo simbólico, sai do intermezzo das cortinas, do palco, das coxias para ocupar outra lugaridade. Já que o espaço do Arlequim na comédia italiana era secundário, figura que ajudava a entreter o público, mas gradualmente foi ganhando centralidade nas peças. Daí em diante, já sabemos sua história: Roubou Colombina do apaixonado Pierrot, conquistou o coração de Colombina, contudo nunca a ela se apegou. Seu discurso era:
“Quero viver neste mundo
como quem vive só um dia:
cada fração de segundo,
fugaz como a estrela-guia” (De musas e colombinas, p,51)
O que se observa é que Arlequim, com sua roupa colorida em losango, era adepto de um carpe diem, da pior qualidade, daquela praticada no declínio de Roma: um carpe diem calcado no mero hedonismo e pura diversão.
Arlequim é ambíguo. Escorregadio. Sedutor. Nesse sentido, é sinônimo também de: farsante, irresponsável, brigão, valentão e bufão.
Não há porque cobrar de ti, amor,
o que tampouco posso dar de mim.
Posso porém pedir, veja-me assim
como semente forte em viço e cor
a alimentar teus sonhos de Pierrô,
quem sabe até quimeras de Arlequim
(todo vestido em tiras de cetim)
que após sorver um gole de licor. (Mascaradas, p. 69)
Daí, talvez, sua carnavalidade vir sempre à tona ano a ano. Todas essas caracterizações o desloca do anonimato para o centro: daí a “carnavalização”. Arlequim e as inconstâncias do seu coração ofertam a batida de boa parte dos versos do livro de Márcia Sanchez Luz:
Do pranto que me entristece
sugo as lágrimas que correm
dos olhos de um querubim.
já do canto que enternece
sorvo as delícias que escorrem
de um coração arlequim (De musas e Colombinas)
Por isso, me conecto neste momento à capa. Uma imagem em primeiro plano nos traz uma espécie de coração colorido, mas constituído por algo parecido como duas interrogações e um pequeno coração com a função de ponto. As interrogações lembram ainda duas claves de Fá, que quando empregada na partitura musical o que entrega ao músico a freita de tocar mais grave seu instrumento. Por exemplo no piano, as oitavas mais graves do piano não têm correspondências em uma pauta na qual a clave de Sol faz parte. Este plano mais grave, mais tenso também, pode ser percebido em alguns, como em: “Agonia” ( p,18); “O sol da meia-noite” ( p. 19); “ Luto” (p.25) “Sinto tanta dor / que ela parece querer / se esconder dentro de mim” , uma boa composição imagética entregue ao leitor, visto que a ideia de aperto causado pela morte, ao ponto de se ”esconder” dentro da gente, de maneira que não a sentimos e não a encontramos de tão forte é a dor. Ainda quando nos apresenta a tristeza em “Duas trovas premiadas”:
Em meio à sua incoerência,
o homem quer entender
o que nem mesmo a ciência
é capaz de esclarecer
Se no destino há tristeza,
de encontro às pedras, eu sigo
construindo a fortaleza
que me servirá de abrigo ( p. 28)
A dor e a tristeza vão ganhando tons mais graves em poemas como: “Bang Bang Contemporâneo”, “Mundo Insano”, “Constatação”, “Terremoto II”. “Distanciamento”, isto para citar apenas alguns, nessa dicção de Márcia Sanchez Luz.
Erotismo é paga importante da autora no interior da obra. Em “ Eros e Thanatos”:
Quando estou nua sob a luz da lua
penso em teu corpo bem colado ao meu.
Ficar contigo sempre a sós ao léu
faz com que meu receio se dilua. ( p.40)
Eros é o que afeta a corporeidade do feminino no poema, traduzido pela imagem da lua. É notória tal relação. É a lua que controla os movimentos das águas dos mares na terra. No poema é a lua que move os fluxos e os interfluxos dos amantes. Visto que o corpo só é corpo com a ideia de movimento:
e se transforme em gota que flutua
em meio ao turbilhão varrendo o céu.
Durante o dia tu és um cinzel
moldando-me pra noite eu ser só tua! ( p.40)
É o movimento que fabrica a elaboração da corporeidade, de modo que mesmo estático o corpo continua a se mover. Tal como a terra e a própria lua vertida no poema. Daí a potência da vida que se agencia nessa fricção do “turbilhão varrendo o céu” com um ensaio para a moldura daquilo que se espera para a noite: “ ser só tua!”.
Contudo, vale lembrar que a potencialidade da vida não emerge sem a congruência com a morte. Por isso, o título do poema associa Eros e Thanatos, este signo da morte. Mas também é bom trazer a ideia de que o orgasmo, principalmente o clímax feminino, é também reconhecido como: “La Petite Mort”, pequena morte. É o que se observa no seguinte trecho de outro poema: “E eu me sinto nua: / coito prematuro / beirando a ironia / de um dor rainha” ( Fazendo as contas); “ que, mais que o amor, é gostoso / (pois brejeiro e misterioso) / como a brisa a me afagar” ( Spleen); “de amor intenso, cavalgar pulsante / de corpos que se perdem da razão” ( Partitura); “Por vezes este amor me varre os dias / como uma tempestade em pleno estio / a me afogar em medos e fobias” ( Acalanto).
Creio que é sob este aspecto que surge Thanatos, dessa maneira os corpos seguem o fluxo, os fluídos de um continuum entre o céu e o hades, não havendo entre eles fronteiras, nem uma definição de um topos fixo. Nesse sentido, Byung-Chul Han no seu livro “Agonia do Eros” nos indica: “ O outro que eu desejo (begehre) e me fascina é sem-lugar”. Assim, no poema “Eros e Thanatos” é um recado para não perdermos de vista a “experiência da atopia do outro”. Se interpõe como a negação “ a tendência da sociedade de consumo é eliminar a alteridade atópica em prol de diferenças consumíveis, sim, heterotópicas. A diferença é uma positividade em contraposição à alteridade” (HAN, 2020, p. 9).
O sol já vai dormir e saboreio
a lua prateando um céu de mago
que nunca vi em sonhos indistintos.
Acordo de um profundo sono e sinto
a plenitude desse intenso afago
que pôs um fim a todo meus anseios. ( Eros e Thanatos, p. 40)
Por tudo isso dito, é que nós, do DE OLHO NA ESTANTE, indicamos “Coração Arlequim” livro de Márcia Sanchez Luz publicado pela Editora Arribaçã.
* Johniere Alves Ribeiro é professor-doutor e resenhista parceiro da Arribaçã. O texto acima foi publicado na seção “DE OLHO NA ESTANTE”, em seu perfil no instagram: @johniere81
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O livro “Coração Arlequim”, de Márcia Sanchez Luz, pode ser adquirido no site da Arribaçã, clicando AQUI
Johniere, gostei muito de sua leitura embasada em Bakhtin. Polifonia, alteridade e dialogismo são fundamentais na construção de si mesmo como ser social que respeita a diversidade e a entende como essencial para o desenvolvimento sócio-afetivo.
Gratidão pelo mergulho sensível em meu CORAÇÃO ARLEQUIM