DE OLHO NA ESTANTE: Escrita anfíbica em “Domingou Apandemia”

Por Johniere Alves Ribeiro

 

A enunciação ficcional por meio do gênero diário não é algo de hoje. Já nos é notório uma lista de escritores que compunham sua escrita por este viés: Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, Cesare Pavese, isto só para citar alguns nomes da literatura que usaram de tal estratégia da narrativa.

De uma maneira geral, o diário é uma modalidade textual muito associada a uma escritura da intimidade e até mesmo fora do espectro literário sempre foi considerado um gênero menor por esse motivo. Isso talvez ocorra em nosso contexto ocidental devido muitos acreditarem que o sentimento e o afeto nunca estão abertos a nos “ensinarem” – se é que podemos chamar assim. Desde Platão com a expulsão do poetas da sua “República” até a máxima “penso, logo existo”, de Descartes, o sentir foi separado da racionalização. Contudo, vale lembrar que a palavra associada à razão: “cognição” tem sua origem latina em GNARUS – o que sabe, que, por sua vez, deriva de NARRARE: “contar, relatar, narrar”. E é o que o diário também faz, tornar conhecido algo – independente do foro íntimo/coletivo.

Sob essa ótica que li “Domingou Apandemia” de Leonardo Davino. Livro que, como o próprio título indica, foi produzido em um contexto global terrível da pandemia da Covid-19. Davino lança mão da proposta da liberdade que o diário ficcional oferta ao autor de literatura e nos registra o seu “gnarus” de suas vivências em dominguitudes pandêmicas. Creio que é este o ponto mais alto do livro. Não é um diário comum, que conta o passar dos dias em todos os dias da semana. Não! Leonardo narra a trajetória da pandemia a partir do interior dos domingos, dia, naturalmente, tão esperado por todos mas que com a SARS/Covid-19 o autor deixa evidente o que sentimos: 1) em esvaziamento ou 2) dessacralização do dia de domingo.

“Quinquagésimo segundo domingo de pandemia: A nossa alma coletiva suporta quantas despedidas? Um ano dos primeiros casos, das primeiras mortes (…). Nos postes da minha rua grafitaram essa pergunta “ essa vida é muito boa?”. “Não há saídas / só ruas viadutos / avenidas”, escreveu Régis Bonvicino. “Contatar irmandades e redes de solidariedade. Sabe, mainha, “Já te falei tantas vezes do verde dos teus olhos / todos os sentimentos me tocam a alma”, (…) (p. 96).

 

Como se observa é uma escrita que chamo de “intencionalmente híbrida”  e sem muita preocupação com tantas regras do contar. O que interessa mesmo é tocar a nossa alma. Dessa maneira, Leonardo percorre o caminho inverso do diário, saindo de uma escritura íntima. Contudo, promove uma escritura que corre ao íntimo coletivo. Daí o apelo para: canções da MPB, leituras feitas, uma fala com a mãe, as redes de solidariedade, etc. Tudo o que fizemos na tentativa de escaparmos às domingueiras pandêmicas.

“Domingou a pandemia” (Arribaçã, 2022) fricciona e ficciona as nossas narrativas/dramas diários no seio da pandemia que ainda não acabou, no qual o receio de isolamento social, mesmo com vacinas disponíveis, recrudesce à nossa porta todo dia. Leonardo Davino se arrisca ao tratar de um tema tão trágico sem ter que apelar para uma linguagem lúgubre. Se arrisca também a trazer um tema sobre o qual muita gente também escreveu. Também se arrisca o DE OLHO NA ESTANTE, mas isso fazemos a cada edição, ao apresentar um livro  de escrita anfíbica e repleto de hibridizações.

 

Johniere Alves Ribeiro é professor-doutor e resenhista parceiro da Arribaçã. O texto acima foi publicado na seção “DE OLHO NA ESTANTE”, em seu perfil no instagram: @johniere81

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O livro “Domingou Apandemia”, de Leonardo Davino, pode ser adquirido no site da Arribaçã no seguinte link: http://www.arribacaeditora.com.br/domingou-apandemia/

 

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