Por Johniere Alves Ribeiro
Pancadão.
Escrita com momentos de dureza. Lances lisos, escorregadios de delícias em porosidades reais.
Desejo que se mobiliza como força motriz.
São as impressões que foram me enredando ao ler “O insuspeitável perigo do instante-beijo e outros contos”, de Lourença Lou (Arribaçã, 2020). Um livro com cenas calcadas na vida e seus ensejos de sutilidades nos ofertam enquanto habitantes de um sopro existencial, como se ele fosse fruto das circunstâncias convenientes. Mas são as palavras, bem utilizadas pela autora, que unta tudo isso – a vida em ensejos, suas ânsias e as conveniências: “Beto a puxou contra seu corpo, enquanto os outros se acomodavam por ali. Sentiu sua ereção nas costas ( Guerrilheira, p.21).
“As palavras atropelavam-se e saíam intempestivas. Ela queria nova vida. Não suportava mais aquela vida burguesa: os quadros na parede, os tapetes no chão, o ir e vir diário da sogra, as músicas de Elton John, o quebrar de louças da empregada[…]
Olhou ao redor e novamente voltou-se para o marido. Seu corpo enrijeceu-se e de forma decidida deu-lhe as costas. Saiu da sala batendo a porta e pegou o celular. Em algum lugar daquela cidade deveria haver algum cafajeste que se despiria para ela sem que preço do prazer fosse a rotina mortal daquele casamento” (Os muros da convivência, p.20).
“O insuspeitável perigo do instante-beijo” apresenta-se de uma forma singular, de modo que não sabemos se é um livro repleto de desejos coletanados em narrativas. A cada história lida certeira a latente ousadia de uma escrita posicionada socialmente, contudo sem bandeirismos ou panfletarismos. O que temos é uma escrita que consegue captar a agoridade e suas anuências.
Com um tom de agitação, as histórias erguem-se em um afligimento eclodial que se sobrepõe em cada cena descrita. Daí termos contos com um forte apelo às agoridades do nosso tempo, no tocante aos modos de habitação do desejo com suas flechas de arroubos, tal qual um Eros tormenta enfiado sob os fluxos da nossa contemporaneidade, como se identifica em “A força de Dalila”, que quando ainda criança “debaixo do cinto e do abuso sexual do pai” enveredou na profissão de garota de programa e confessava ante as amigas que nunca sentia nada. Tal trauma a interditava ao sentimento e ao amor, até que encontrou Júlio e: “Explodiu por se sentir uma mulher normal. Enfim reagia. Nascia a fome de ser tomada, mastigada, engolida. Gargalhou. Outra vez. E de novo” (p.25). Veja o tipo de agoridade que faltava a essa personagem do conto, algo que parecia natural as colegas de profissão a ela durante muito tempo foi lhe arrancada tal potência.
Diante desse exemplo e de outros que aparecem no livro, observamos que Lourença Lou expõe o quanto o corpo feminino sofre os mais variados tipos de violências sociais. Seja no espaço doméstico, seja no espaço público, tais corpos são objetificados. De maneira que diante de determinados olhares eles estão como em uma vitrine de rua, prontos para serem possuídos a qualquer custo.
Lou escreve: 1 como quem clama. 2 como quem reza. 3 como quem ama. 4 como quem molha o beijo. 5 como quem come e tem sede. 6 como quem percebe o desejo atormentado em guilhotinas de nãos e de sins. Quer conferir? Então leia: “Florada de Abril”, “Outro lado da paixão”, “Do lado de lá do Atlântico”. É uma escrita de quem “limpa a garganta, engole a estranheza sempre nova e inicia mais uma dinâmica” da escrevivência. São linhas que, de alguma forma, acessam escancaramentos sociais com suas entranhas narcisificante. Assim o desejo, os corpos e o Eros tornam-se éthos do consumo.
É certo que no interior de um espectro literário ou até mesmo do senso comum Eros é ícone de uma energia vital que impulsiona os seres humanos a escrutinarem conexões emocionais e satisfações físicas tudo em um campo mais íntimo. Contudo, é também válido entendermos que na contemporaneidade quando a força de Eros se conecta ao “ éthos do consumo” essa energia vital se transmuta em aquisição de bens materiais, do prazer sensorial e maximização do bem-estar individual intermediado pelo consumo – é só ler o conto “Ingratidão”.
Diante de tais aspectos, podemos intuir que vivemos como se Eros pudesse ser instagramável na vida real/cotidiana, de modo que preceitos associados às “relações autênticas”, à “satisfação duradoura” e o “ autoconhecimento” se liquefazem. E solidificam cada vez mais: 1) a comercialização do desejo, 2) superficialidade das relações e 3) a supervalorização da imagem pessoal. Nisso tudo, se concentra a agonia, a tormenta de Eros na contemporaneidade. Creio que os contos listados em “O insuspeitável perigo instante-beijo…” de Lourença Lou nos revela as complexidades de tais agenciamentos envolvendo o insigne entrevero inerente ao “não-poder-podendo-poder” no perigo instante-beijo na contemporaneidade que comporta ou não Eros e seus segmentos derivantes.
Por isso que o DE OLHO NA ESTANTE indica o livro “ O insuspeitável perigo do instante-beijo e outros contos” de Lourença Lou ( Arribaçã, 2020).
* Johniere Alves Ribeiro é professor-doutor e resenhista parceiro da Arribaçã. O texto acima foi publicado na seção “DE OLHO NA ESTANTE”, em seu perfil no instagram: @johniere81
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“O insuspeitável perigo do instante beijo e outros contos”, de Lourença Lou, pode ser adquirido AQUI