Por Johniere Alves Ribeiro
Em seu livro “A memória, a história, o esquecimento” Paul Ricoeur nos conduz a ideias de detidamento sobre as questões que envolvem a memória. Nele Ricoeur, apresenta seu pensamento em cinco partes importantes: o espaço habitado; o tempo histórico; o testemunho; o arquivo e a prova documental. Para Ricoeur, nesse campo se incluem também as lembranças de lugares nos quais moramos, visitamos e, segundo esse filósofo, não podem ser desprezados, visto que acionam nossas memórias íntimas e/ou compartilhadas. São elas que tecem concomitantemente lembranças de uma espacialidade imediata, bem como as espacialidades de lugaridades distantes, mas que consegue apresentar trilhas habitáveis.
Nesse sentido, as lembranças do eu lírico em cada verso do livro “Cabo Branco e outros lugares que não estão no mapa” de Linaldo Guedes, são tessituras que agem como uma espécie de taxonomia da memória e vai linkando, para alguns, um mosaico. Perpassando um alargamento das multi/pluri/esapcialidades da nossa existência concreta e simbólica. Mais do que um “mapa”, vocábulo presente no subtítulo, estamos lendo uma cartografia, não em um sentido de plantas ou croquis. Todavia, estamos diante de uma cartografia de afetos de desejos, de afecções que invadem a carne corporal dos poemas e de quem os ler:
“sanhauá
sangra de paixão na paraíba
e a paraíba faz círculo em torno no sanhauá
-onde ecoa o assovio do tempo que se arrasta.” ( sanhauá, p. 19)
Ou como em:
meus amigos guiaram ruas em itinerários
das acácias
alguns estão longe na retina
no sabor de jambo em paralelepípedos vermelhos
do jaguaribe ( Amigos)
A partir desses fragmentos lembro versos do poeta Hildeberto Barbosa Filho: “Quem habita o poema / perde-se na geografia. / Não existem fronteiras / no reino das palavras. / No reino das palavras / são múltiplos os acidentes. / Lugares não têm ponto fixo, / o tempo se dilata / e todo princípio é incerteza”. Tais aspectos são preponderantes em “ Cabo branco e outros lugares …”: 1) perde-se na geografia: 2) a falta de fronteiras, 3) os acidentes no caminhar da memória; 3) a falta de fixidez; 4) a dilatação do tempo e do espaço; e 5) a incerteza, todos relacionadas a não só a existência do eu lírico, mas da própria existência humana.
São demarcações de uma lavoura hodierna, elaborada por lembranças de uma infância que passou, de momentos cotidianos que já foram e não são mais. Olhar de um AQUI, que em segundos – seja na leitura ou na vida – já se torna passado. Daí o impasse entre “a história, a memória e o esquecimento”, do qual nos fala Paul Ricoeur.
Nesse sentido, faz jus destacar que a memória opera com um bisturi que corta, que promove seleções que ao mesmo tempo protege e nos expõe. Além disso, vale reforçar, que toda lembrança, de uma forma ou de outra, é também um ato “narrativoficcional” e, por que não, também poético: “ subo degraus no hotel globo / para decorar a cidade baixa / (ai,ai, ai …) / lá em baixo, o porto do capim/ acena e chora por mim” ( Arte déco, p.22).
A memória, a história, a lembrança e estrutura um modelo nomadismo: (tal qual um balduíno e suas tendas;) tal qual a diáspora nordestina – enfocada em alguns poemas; promovem movimentações, encadeamentos de passos que correm na fundamentação de trajetórias, de entradas e saídas. Enxergamos um nomadismo que não pertence apenas às vozes evocadas nos poemas, mas também são nossas vozes que se misturam numa “playlist cartográfica”.
Trânsito. Tráfego. Emulam nos poemas de Linaldo Guedes. Boa parte deles são constituídos de movências. Instituídos de passos que seguem, ora reticentes, ora lentos-leves-livres-presos-encharcados-secos-lisos, em outros momentos um ponto de interrogação. E nesse conjunto, além das imagens remetidas a Cabo Branco, suas areias brancas e águas quentes o livro nos apresenta um sincretismo, não só religioso, como aponta o termo, mas também marcado pelo hibridismo entre: a) infância; b) adolescência; c) adultescência; f) ingenuidade/obscenidade/erotismo/amor. Todos esses elementos agem em forma de fricção, de porosidade. E no “entre” é a poesia que teima, que resiste, que recinte. “Trazem outros mares que jogam suas ondas em sua lida, como um pai beliscando uma agulha”, parafraseando o próprio Linaldo Guedes. Pois:
de um lado, o rumo do litoral
paisagens, areias, biquinis, belezas
e a certeza de que tudo é um mar
( de brisa)
de outro, rumo ao centro
buzinas, pedintes, assaltos, acinte
e certeza de que tudo é um mar
( de caos) ( Avenida Epitácio Pessoa, p. 23)
Ou como se pode compreender também no poema “ Cabo Branco e outros mares”, do qual indico os seguintes fragmentos:
trago medos da barreira de cabo branco
saudades de barracas e agueiros
meu pai beliscando uma agulha
o menino que corria nas areias do sol
trago a memória do sal de tambaú
e do impotente hotel, cartão postal da maresia
lembranças do mercado, dos bares, da lua
o menino lambendo os dedos afrodisíacos
trago a solidão escura de manaíra
e do descampado vazio de seu calçadão
cantigas do nada para pescadores da vida
cantigas de espumas nos pescados dos pratos
[…] ( p.26)
É de teimosia a poética contida neste novo livro de Linaldo Guedes. É a poesia que teima, que lima/lixa/ranha/estica as imagens cruas, fortes e que impactam o leitor, como em: “ Girassóis do Mangue”, “Ludicidade”, “Monólogo de um gentio”. O insólito também ergue-se, de uma profundeza que viceja no livro. “ Foi quando passei da ponte do sanhauá / que vi restos da orelha de van gogh / (sangue no rio) / mangues de diálogos com zola / girassóis de caranguejos / meninos e as mãos. E a lama!”. Os versos lançam mão da intertextualidade como uma forma de irromper a denúncia ante ao descaso e de como a arte pode ser uma arma para tanto, sem ser panfletária.
A intertextualidade também é uma modalidade da memória individual, visto que ela se constitui como uma maneira de promover interações. Mesmo que se pense que essa memória é algo reservadamente pessoal, isso não é verdade. O livro “ Cabo Branco…” demonstra que é uma confluência memorial de todos que tomem contato com a obra, mesmo que esses todos nunca tenham visitado e estado nos mesmos lugares descritos pelo o eu lírico. Contudo, sem dúvida alguma, o que vemos só enxergamos as construções figuradas pelas elaborações coletivas, culturais, sociais e históricas.
Outras interfaces confluem no interior do livro para um campo de analogias, de metonímias que remetem não só aos elementos artísticos dos poemas, faz referência ao FORA do poema. Uma marca preponderante na escrita de Linaldo, desde “Os zumbis também escutam blues e outros poemas”.
Além de todas essas características apontadas, chamo a atenção para os poemas das páginas pretas. Essas páginas pretas promovem uma outra dicção ao fluxo do livro. Coincidência ou não, os mesmos estão quase sempre figurados em números de páginas ímpares. São nove páginas que acoplam tais poemas, que ofertam ao leitor um tom mais ácido, mais crítico. Neles a ironia se eleva com mais potencialidade: “quando o brasil nasceu já havia outras tintas por essas árvores”; “ quando o brasil aprendeu os versos já existiam”; “quando o brasil se libertou já havia outras cores escravizadas”; “ quando brasil rezou o milagre já tinha morrido”; “ Pindorama”. Como se observa, todos os títulos têm uma relação direta com a realidade histórica, social e cultural do Brasil, o que desenha para nós leitores uma parte do perfil formador da nossa sociedade.
Foi por todos esses motivos que o DE OLHO NA ESTANTE indica “Cabo Branco e outros lugares que não estão no mapa” de Linaldo Guedes ( Arribação, 2022).
* Johniere Alves Ribeiro é professor-doutor e resenhista parceiro da Arribaçã. O texto acima foi publicado na seção “DE OLHO NA ESTANTE”, em seu perfil no instagram: @johniere81
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O livro “Cabo Branco e outros lugares que não estão no mapa”, de Linaldo Guedes, pode ser adquirido no site da Arribaçã, clicando AQUI