Por Joel Cavalcanti
Existe uma poesia brasileira indescoberta que tem passado ao largo da crítica especializada e do foco prioritário dos principais prêmios literários da atualidade. São poetas que apresentam uma escrita mais densa e exigente, caracterizada por uma experimentação metalinguística que desafia as linhas hegemônicas da literatura. A editora paraibana Arribaçã abriu a pré-venda de uma obra que busca ir na contramão desse movimento. “Novas vozes da poesia brasileira – Uma antologia crítica (Arribaçã, 252 páginas, R$ 50), organizada pelo escritor e professor de literatura paulista Cláudio Daniel, reúne 36 poetas e 108 textos que se distanciam de uma estética dita oficial.
Os principais eixos utilizados para escolher os autores foram baseados em padrões de qualidade e inovação e eles podem apresentar uma certa dificuldade de leitura a ponto de serem consideradas herméticas. “Nós não temos medo de sermos chamados de herméticos ou de publicar poesia considerada hermética, mas esse não foi um critério de escolha. Há alguns poetas que podem ser chamados desse modo, embora essa palavra tenha perdido muito do seu sentido. Alguns poetas que têm uma escrita mais elaborada e que exigem uma atenção maior do leitor, foi chamada de hermética de um modo até pejorativo. ‘Ah, esse poeta é hermético’, quer dizer, ele é elitista, não conversa com o público, escreve coisas que ninguém entende”, reflete o organizador Cláudio Daniel.
Para montar uma obra com as “novas vozes” da poesia brasileira foi preciso ouvir as redes sociais. Foi através principalmente de perfis no Facebook e no Instagram que esses escritores foram selecionados obedecendo alguns critérios. “Qualidade, consistência, originalidade temática e invenção, não no sentido de descobrir algo radicalmente novo, o que não acontece há bastante tempo, mas inventividade, no sentido mais medieval e renascentista, de saber utilizar as técnicas literárias, as técnicas poéticas de um modo rigoroso e eficaz”, acrescenta o especialista. Neste recorte, a maioria dos poetas é feita de mulheres e de escritores de diversas regiões do Brasil.
Entre eles, há dois paraibanos: Guilherme Delgado e Flaviano Maciel Vieira. São vozes recentes, apesar de haver poetas com mais de 60 anos e que começaram a escrever poesia há pouco tempo e nunca estiveram em evidência na mídia. São poetas que permaneceram na obscuridade durante muito tempo, embora prevaleça um número de poetas jovens. Na antologia, é possível se reconhecer poemas que dialogam com a nossa época, que tratam do período recente de autoritarismo no Brasil. O que predomina, porém, é uma poesia lírica, que muitas vezes trata de questões subjetivas e outras até apresentam temáticas mitológicas ligadas à cultura afro-brasileira.
“Vivemos num dos piores momentos da poesia brasileira, e, sobretudo, da crítica literária brasileira, que hoje está completamente a serviço do mercado editorial, para não dizer da Companhia das Letras, e, em segundo lugar, da Record, dos concursos viciados e dos grupos hegemônicos. Então é uma crítica literária comprometida, que nunca vai dar espaço a um poeta de qualidade se ele não tiver o selo dessas editoras, se não tiver ganhado Jabuti, Oceanos, se não for da turma do poeta tal ou do crítico Y. Então esse é um momento muito pequeno, muito mesquinho, dentro da história da crítica brasileira. E também, nem todos os poetas que escrevem hoje têm um grau de qualidade elevado”, critica o organizador com doutorado em Literatura Portuguesa na USP.
Cláudio Daniel já foi diretor adjunto da Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, além de curador de Literatura no Centro Cultural São Paulo e colunista da revista Cult. Atualmente, é editor da revista eletrônica de poesia e artes Zunái e também publicou diversos livros de poesia, ensaio e ficção, entre eles Cadernos bestiais: breviário da tragédia brasileira, Portão 7 e Marabô Obatalá, todos de poesia, o livro de contos Romanceiro de Dona Virgo e o romance Mojubá. De forma incisiva e engajada diante das questões que envolvem a poesia contemporânea e a crítica literária brasileira, o organizador sugere uma urgência em promover uma reflexão mais profunda sobre os critérios de avaliação da literatura, assim como uma valorização das vozes marginalizadas e das obras que desafiam as convenções estabelecidas.
“O que fica mais visível, quase sempre, é uma poesia medíocre, mas que é incensada pelo poder vigente hoje. Apresentar poetas medíocres laureados como sendo a melhor coisa que existe hoje na poesia brasileira, eu acho um crime. É algo completamente artificial que obedece apenas a lógica do mercado e a influência política daqueles grupos que têm o poder no meio literário. E muita gente compra gato por lebre. Nessa minha mostra, reuni 36 poetas que eu acredito que estão muito acima da média, e que apresentam um trabalho que merece ser lido, merece ser reconhecido, merece ter atenção, e dificilmente eles receberiam isso por parte da crítica literária hegemônica”.
Mais do que apontar o dedo para o atual quadro poético nacional, Cláudio Daniel apresenta em Novas vozes da poesia brasileira – Uma antologia crítica um caminho que a literatura insubmissa contorna e se nega a sublinhar.
“Quando chega um poeta como Guilherme Delgado, da Paraíba, e faz uma poesia mais cabralina, mais seca, mais concisa, mais substantiva, mais metalinguística, ele se coloca na contramão de uma tendência hegemônica. Não só ele, vários outros poetas, a Iolanda Costa, a Paola Schroeder, o Sávio de Araújo, o José Ricardo, e tantos outros poetas que estão elencados neste livro, correm por fora dessa raia viciada, dessa raia de imitação”.
Confira poemas dos autores da PB na obra
Resignação diante do irreparável (lsmael Nery)
(Guilherme Delgado)
Três nuvens negras prestes a
encobrir
uma réstia de sol.
Equilibrando-se sobre uma perna,
sem braços, mutilado,
sem dúvida parece deprimido,
mas seu rosto sem rosto
não o diz – e que falta faz um rosto
que se derrame em lágrimas!
O chão da arena indica que houve luta:
ameaçando lançar-se
no azul de um oceano melancólico,
sua sombra medita.
Ciclos
(Flaviano Maciel Vieira)
escrever oroboro fecundo de
cauda
rever o rever escapar do espelho
regresso na dobra do olho que
volta
visão do destino
do ido centelho
a ida do ido do tipo eco em grito
nirvana que influi e conflui
circulado
de ré codifico comigo consigo
de ré codifico
comigo elevado
retorno da aurora no fim começou
a cauda e a boca em lastro cerrado
em dobra do broto dobrado voltou
retorno em frente
expiro inspirado
se entra no rumo a cauda cercada
das voltas no prumo do vir que está
indo
da parte do todo imperfeito
mesclada
dregaus devorados
viver insistindo
do ido centelho
visão do destino
regresso na dobra do olho que
volta
rever o rever escapar do espelho
escrever oroboro fecundo de
cauda.
Matéria publicada no jornal A União, edição de 2 de março de 2024