Em “Asas de terra e sangue”, Ivy tira poesia das dores

Por Isac Machado de Moura

 

Li o livro de Ivy Menon em três parcelas. Que livro!

Ivy conta histórias de sua infância, de sua vida, colocando poesia, muita poesia num jeito agreste de viver no sul.

“Asas de terra e sangue” pega a gente de jeito. De um jeito que a gente não quer parar de ler. É a  minha história. Só que vivida por uma menina. No Sul. A fome não escolhe região. O país inteiro foi escravocrata. O patrão brasileiro nunca deixou de ser escravocrata.  Nossos pais, nossas mães foram explorados até seus limites.  Os dela, no Sul. Os meus, no Nordeste. E eu me vi no livro da Ivy. Respeitadas  as diferenças, nos pais da Ivy, nos muitos irmãos, na pobreza extrema, nos  mais velhos cuidando dos mais novos, na sede de estudar. Sofri menos que ela no quesito estudar.  Sou menino. E fui menino doente. Minhas doenças da infância e da adolescência me salvaram.

Quando a gente lê ficção, e eu gosto, a gente nunca sabe o que passa pela cabeça de quem escreve, a gente fica naquela tensão de vai  morrer, não vai morrer, porque escritores brincam de Deus e definem destinos. Quando lemos realidades, temos aquele consolo: isso é autobiográfico, ela sobreviveu a isso…Meu Deus! Mas por outro lado tem as perdas pelo caminho. E são perdas de verdade. E isso dói.

Li Ivy Menon, a ex Ivanilda Menon, entre lágrimas e sorrisos. O livro,  escrito em prosa, é pura poesia. Muita poesia. Não é que a Ivy romantize o que não deve ser romantizado. O que ela faz é tirar poesia das dores.  E são muitas Ivys no livro. Muitas. A Ivy pós-bebê, a Ivy menina, a Ivy adolescente, a Ivy sonhadora,  a Ivy boia-fria, a Ivy mulher… E o tempo todo a Ivy poesia cruzando todo o livro.

Li “Asas de terra e sangue” com sangue nos olhos. Eu tinha muitas outras coisas pra fazer, mas peguei o livro para aquela lindinha preliminar da introdução,  do prefácio,  da ficha catalográfica. Sim, eu leio tudo do livro antes de começar o livro propriamente dito. O prefácio de Angela Zanirato  também já é irritantemente gostoso de se ler. Aí fiz o que não deveria ter feito. Li O COMEÇO. Pronto. Já era minha tarde de um domingo. Não dava para soltar o livro. Só consegui fazer isso horas depois, já passando da página 100, porque o meu cérebro tem hora certa para gritar “caféééé”.

Amei de paixão o livro. Um dos melhores do gênero que já li. É absolutamente impossível não se emocionar profundamente lendo a Ivy. São crônicas autobiográficas, curtas, ora sequenciais,  ora não. Uma vez, num encontro de Carolina Maria de Jesus com Clarice Lispector, num evento, Carolina  mostrou a Lispector para a filha e disse algo do tipo “essa é uma escritora de verdade”. Clarice respondeu de imediato, com algo assim : “Você é uma escritora de verdade. Eu lido com ficção.  É você que lida com realidades.”

Em “Asas de terra e sangue”, Ivy lida com realidades empanadas de poesia. Ela, na condição dos 2% dos que vivem aquela vida e sobrevive, dá voz aos 98% que morrem no anonimato das fazendas escravocratas, de velhice,  aos cinquenta ou antes, enriquecendo os patrões e se miserando. Se eu fosse você, leitora/leitor, faria contato imediato e pediria um exemplar. Caraca! Que livro!

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