Eu li Peccatum

Por Cissa de Oliveira*

Nesta semana me dediquei a ler o romance Peccatum de Chris Hermann. Trata o livro de uma história de amor entre duas mulheres. História de amor e de renúncia, em favor da moral imposta na época, iniciando-se nos idos anos de chumbo de 1970, no interior do Brasil. Nada demais para os tempos atuais. Atualmente, os jovens e a maioria das pessoas não se preocupam muito com a opinião de quem quer que seja, muito embora ainda paguem por isto, nem que seja de forma velada.  Mas na época em que as personagens se situam no romance de Chris Hermann, isto era uma verdadeira aberração.

Abaixo, um trecho do livro que descreve um pouco a pequena cidade fictícia Coleirinhos, no interior da Bahia:

“O ano era de mil novecentos e setenta e três, com o presidente Garrastazu Médici no comando da nação, em plena ditadura militar. Cidade de pouco mais de trinta mil habitantes, Coleirinhos parecia resistir à modernidade, cravejada de construções no estilo colonial. Casarios e sobradinhos arrebatavam os visitantes com a arquitetura barroca e fachadas pintadas em tons pastel. A cidade vivia, sobretudo, da pesca, do artesanato e do turismo. O centro da cidade resumia-se em duas vias perpendiculares: a Rua da Igrejinha e a Rua da Prefeitura. Ambas muito bem conservadas pelo orgulho da cidade. A Igreja de Nossa Senhora das Dores ocupava um quarteirão da Rua Igrejinha. Proporcionalmente, parecia também ocupar um quarteirão na vida dos católicos fervorosos daquela pequena cidade costeira, a cem quilômetros de Salvador. No cruzamento das ruas principais do centro, acomodava- se a bela pracinha Nossa Senhora do Carmo, uma das atrações da cidade com o seu coreto em rococó ao centro, árvores frondosas, jardins floridos e bancos de madeira. A escola primária e ginasial Almirante Edgar Peixoto, no final da Rua da Prefeitura, ficava bem em frente à pracinha. No pátio, onde se via hasteada a bandeira do Brasil, já se ouvia o burburinho das crianças na saída.”

A autora, que inclusive já escreveu outros cinco livros antes deste (um de romance e quatro de poemas), é de notável talento. A narrativa se inicia descrevendo o pano de fundo, identificando a época e o local, expondo o cotidiano de alguns personagens. E então acontece o envolvimento rápido e profundo entre as duas mulheres, o sofrimento daí decorrente, as decisões da personagem principal. Sentimentos vivos, meandros plausíveis mas insuspeitos. Eu não me prenderei à história propriamente dita por motivos óbvios, mas como passar ao largo do “fazer literário” da autora?

“Suas mãos suavam e seu coração parecia querer sair pela boca. Teresa agora estava ali de verdade. E a verdade é que ela ainda estava mais linda aos olhos de Carolina. As duas se entreolharam encantadas. Eram olhares e sorrisos que pareciam contracenar um diálogo e, ao mesmo tempo, uma lista de perguntas sem respostas.”

“Semanas e meses se passaram. As estações também. Agora era verão naquele mês de janeiro de mil novecentos e setenta e quatro. Os dias quentes atraıám os turistas para as praias de Coleirinhos. Piragiba, a mais amada, ostentava uma bela paisagem disputada por pintores famosos da Bahia. Mas havia uma pintura que os galeristas jamais veriam; a que habitava o ateliê de Carolina. Outras obras foram iniciadas, assinadas e vendidas. Mas aquela ficou exposta somente para os seus olhos de luto.”

Sou apenas uma observadora de histórias, e uma leitora curiosa nas coisas da literatura. Gostei da dinâmica, do ritmo, da sequência, enfim do “costurado” pela autora de Peccatum. É como se pudéssemos assistir e ouvir uma peça musical em seus diferentes tempos e atos, lembrando que a autora também é musicista.

De repente se passaram seis meses, depois mais um ano, dois, dez anos, e a liga da história, ali, consistente. Outro destaque deste romance é que ele nos lança a reflexões, sentimentos e questionamentos diante do amor, da tirania, da ternura, do preconceito e até mesmo da inveja daqueles mais presos às convenções da época. Parabéns, Chris. Escrever um romance já é um ato de coragem, fazer e concebê-lo com tanta maestria, daí já é magia, peccatum.

Finalizo minhas impressões do romance, trazendo o belo poema introdutório da autora que, por coincidência, me parece ser bem oportuno para o momento que estamos vivendo no Brasil:

 

 

(*)Cissa de Oliveira é o pseudônimo literário de Maria Sileuda Moreira de Oliveira, mestre e doutora em genética e biologia molecular, professora de biologia aposentada em 2019. Ela publicou até o momento os seguintes títulos: A pontinha das páginas, livro de crônicas premiado no I Prêmios literários cidade de Manaus (1ª. Ed. 2007 e 2ª. Ed. 2011); Girassóis ao meio-dia (poesias, 2008); Uma sujeita esquisita (crônicas, 2009); Intrincada Leveza (crônicas e contos, 2012) e Versos e Provocações (poesia, 2020), a ser lançado tão logo passe a pandemia do coronavírus.

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