Jota Guerra e os lugares que não habitamos mais

Jota Guerra tem uma narrativa que flui, como um rio caudaloso que deságua em todos os mares da alma. Ao contrário de muitos autores “modernos”, ele não aposta em invenções de linguagem para envolver o leitor. Como todo bom escritor, ele sabe que a forma tem que sempre trabalhar a partir do conteúdo, e não o contrário. E tem habilidade na escrita para deixar o não-dito no ar. Os leitores gostam disso. De que o autor deixe margem para que ele construa suas conclusões ou até interfira naquele texto por conta própria, criando subtextos a partir do que foi lido.

Passeamos por alguns contos do livro, então.

Em “Grão de areia”, a saga de um velho pescador:

 

“(…) apoiando-se numa casa em ruínas de muro alto, o velho contemplou durante minutos, pareciam horas, o mar fundindo-se com a escuridão carnívora da noite completamente escura, ouvindo as estrelas pontuarem ondas invisíveis na música, agora muito alta, ondas de brilho na memória, ondas batendo cada vez mais for[1]te no fundo de consciência que se equilibrava nas pedras do muro alto.”

 

Vejam que efeito de imagem ele consegue apenas nesse pequeno trecho do conto! Imagem, recurso literário tão pouco utilizado hoje em nossas narrativas, onde a linguagem tem sido cada vez mais direta, como se fora uma página policial de um periódico qualquer, não estimulando a imaginação e a ludicidade no leitor.

Chamo isso de “intravisão”, que pode muito bem ser encontrada, também, em “Desencarnar”. Aqui, o leitor é convidado a visitar cômodos outros, que não apenas os geográficos:

 

“Atravesso o corredor com inédita desenvoltura, pois não ando mais, flutuo. A sala vive em boas mãos paternas, já esqueço que não preciso caminhar, que nunca mais emitirei som algum e que agora transpareço invisível para qualquer ser humano. O olhar paterno segue concentrado em cada letra do jornal desta manhã, passa através meu espectro e analisa rapidamente os pombos no parapeito, que se arrancam os olhos na disputa por alguns pedaços de pão seco. Só então compreendo a fantástica situação na qual me encontro; aceito uma nova missão: uma nova identidade para um novo espírito entre os espíritos; sinto outro ponto de vista fixando novos objetivos, rotas, rumos, caminhos, viagens, festas – tudo recomeça quando da verdadeira visita terrestre”.

 

O cotidiano e o abandono da mulher amada, pode ser encontrado em contos como “Cobras e lagartos”, que já começa instigando o leitor:

 

“Minha flor, aquela mulher que tantas horas viveu comigo, que tanto passou ao meu lado, era de certo uma flor de mandacaru. Mas ela se foi e agora que quase tudo está deserto, só posso meditar solitário em meu grande campo de futebol, o único da região, que mantenho a duras penas e à custa de muitos caminhões-pipa. Os times jogam um torneio aos domingos.”

 

Há, também, sempre um quê de nostalgia nas páginas deste volume de contos, mesmo em narrativas que falam da violência urbana. Vejam esse trecho de “Cidades de brinquedo”:

 

“Esses carrinhos todos lá na avenida, de longe assim do alto parecem aqueles que eu queria quando era menino, nas ruas da periferia, só via eles na vitrine daquela loja do Seu Manoel, tem um filho dele que não sai do banheiro, está lá ele com os carrinhos na mão, entupindo o fluxo da descarga… Dentro da loja tem muitos brinquedos, as prateleiras cheias parecem a cidade agora vista daqui.”

 

Paremos por aqui, para não dar tanto spoiler ao leitor.

“Todomundos”, de Jota Guerra, é um road movie, ou um road book, como disse em comentário que fiz direto ao autor.

Uma obra que nos transporta para todos os lugares que já não habitamos.

 

Linaldo Guedes

Editor

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