Nelson Rodrigues era chamado de imoral, obsceno e vulgar. Isso por conta de suas polêmicas peças e de seus textos realistas sobre a grande família brasileira e sobre os cidadãos de bem da época, que posavam uma coisa para a sociedade e dentro de casa eram outra absolutamente diferente. O dramaturgo pernambucano era polêmico, mas era, sobretudo, genial. E os gênios quase nunca são entendidos em seu tempo. Ele sabia pôr o dedo na ferida da sociedade. Por isso incomodava tanto.
Os contos de Lourença Lou enfeixados nesta coletânea, intitulada “O insuspeitável perigo do instante-beijo”, se encaixam bem nesse legado de Nelson Rodrigues. Não porque Lourença escreva inspirada no autor de “Vestido de Noiva” ou porque queira se espelhar nele. Mas, sim, porque a autora de que falamos aqui também aborda, em seus contos, esse universo tão comum a Nelson Rodrigues. O universo do que está escondido dentro de casa e que passa bem longe do tradicional conceito de “lar doce lar”.
Caso alguma dúvida persista no leitor, corra ao primeiro conto do volume. Em “Ato final”, a autora já mostra a carta de apresentação do livro, num conto recheado de elementos sádicos, masoquistas e do universo fantástico. Um conto forte para abrir o livro e mostrar com quantas sombras se faz a tradicional família brasileira.
Não paramos nesse ato, no entanto. Vários outros contos desnudam essa realidade. Em “Os muros da convivência”, é a rotina do casamento ao som de Elton John; em “Guerrilheira”, o sexo desesperado com gosto de rio sujo; em “Divã de casal”, um pouco de ironia e humor para expor a troca de terapeuta, e não do marido.
Há outros contos dentro dessa obra que merecem entrar em qualquer antologia do gênero. “A cama na varanda”, sobre dominação, fetiches e abandono, é um deles. Mas não só. Leiam “A sentença”, sobre a pessoa que nasceu no corpo errado; “Surpresas da vida”, sobre o triangulo entre a mãe, a amante e o filho; “A ver navios”, sobre a garota de programa que só vai para cama com quem gosta de ler; “Elos”, sobre a mulher que seduzia crianças e depois é estuprada pelo carcereiro; e as líricas e pungentes “Meu pé de laranja da ilha” e “Florada de abril”.
Os contos de Lourença Lou servem, também, como denúncia social. Várias da narrativa dessa coletânea, falam de estupro, de mulheres violadas e abandonadas. “Lâmina do medo” é um deles. “Nataniela” é outro, assim como “Das algemas à chibata” e “Das Dores”.
“O insuspeitável perigo do instante-beijo” é, acima de tudo, um livro sobre mulheres fortes, que sobrevivem (não todas, é claro) ao risco eterno que é ser mulher numa sociedade machista e patriarcal como a nossa. Vários contos narram essa força da mulher, como “Pelas voltas da vida”, “Nem todo vazio se preenche”, “Descoberta”, “Virando o jogo” e outros. O conto que dá título ao livro é sintomático dessa capacidade de equilíbrio com que a mulher tem que viver na sociedade.
Lourença Lou não é discípula de Nelson Rodrigues, como alguns podem se apressar em deduzir por conta desse meu texto. Ela expõe as fissuras secretas da humanidade, como no conto “A la carte”, inusitado e nonsense puro, embora saibamos real. E é do real que Lourença extrai sua literatura. Sabemos disso, mesmo fingindo que é tudo apenas ficção.