Mulherio das Letras chega ao sertão, contra a invisibilidade e o feminicídio

Por Linaldo Guedes

Criado em 2017 e instalado oficialmente em João Pessoa, em evento que reuniu mais de 500 escritoras de todo o país, o Mulherio das Letras logo se espalhou por diversos estados e país. Em meio a busca pela valorização da mulher enquanto escritora, o Movimento também incorpora pautas políticas e identitárias e tem mobilizado grande parte das mulheres que fazem literatura no país. Agora, mais um núcleo do movimento é criado. Trata-se do Mulherio das Letras do Sertão da Paraíba, que tem como coordenadoras as poetas e escritoras sertanejas Miriam Oliveira, Lua Lacerda, Tainara Andrade e Veruza Guedes. O Correio das Artes, que trouxe em primeira mão a criação do Mulherio das Letras, em 2017, também foi atrás para conhecer como funcionará o Mulherio do Sertão.

Antes de tudo, as coordenadoras, que resolveram responder a entrevista de forma coletiva, explicam que o Mulherio das Letras do Sertão Paraibano é um evento público, de caráter artístico, com vistas a uma ação cultural, voltada para a comunidade cajazeirense e comunidades circunvizinhas. “Uma festa em campo aberto que reúne em sua organização escritoras, poetas, debatedoras, musicistas, atrizes, artesãs, ativistas culturais e demais leitoras interessadas na experiência da Literatura como vivência”, informam. Haverá lançamento de uma antologia reunindo a produção, em verso e prosa, das mulheres sertanejas, a primeira do gênero neste século XXI.

Segundo elas, as atividades incluem palestras, oficinas, apresentações culturais, exposições e lançamento de livros, em evento a ser realizado em Cajazeiras-PB, conhecida como a cidade que ensinou a Paraíba a ler, de 20 a 22 de abril de 2022. O evento, em si, cumprirá na execução algumas finalidades integrativas, a saber: 1) Contribuir para dar aos participantes do evento mais oportunidade de socialização do que se é produzido no sertão pelas sertanejas; 2) Debater, a propósito do tema MULHER, a Autoria Feminina na Paraíba e 3) Desenvolver diversificada programação cultural que possibilite mostrar a arte em suas variadas formas produzidas por mulheres.

E como o movimento do sertão dialoga com o núcleo central do Mulherio das Letras? Bem, o Mulherio das Letras conta com um número expressivo de mulheres espalhadas pelo país e se expandido internacionalmente. O grupo se descentralizou em subgrupos representativos de cada estado brasileiro, além do Mulherio das Letras Pretas. “Portanto, trazer o evento para o sertão paraibano é uma forma de aprofundar ainda mais esse protagonismo, pois é no interior do interior do país que se encontram as mulheres mais invisibilizadas em todos os setores do mercado artístico, pelas poucas oportunidades de formação, falta de infraestrutura nas cidades e a nossa missão com esse evento é justamente mostrar a arte da palavra feminina e feminista em suas múltiplas formas, por mulheres que ainda hoje enfrentam obstáculos machistas e racistas e ainda são consideradas menores nos meios literários”, defendem as coordenadoras.

Sobre pautas em comum dentro do movimento, elas acreditam que onde estiverem, estarão unidas em pautas, seja no centro de São Paulo ou no interior da Paraíba, “As mulheres continuam lutando para ocupar os espaços, levando em consideração, por exemplo, que a maior parte das obras literárias publicadas em grandes editoras são de escritores e os prêmios literários são normalmente atribuídos aos mesmos, raramente as colegas escritoras atingem a mesma visibilidade”, criticam.

As quatro escritoras observam que de 2017 para cá já houve muitos encontros do Mulherio das Letras em diferentes versões e nem sempre dá para acompanhar todos os detalhes, “mas no Mulherio do Sertão nos preocupamos com uma questão local que é o alto índice de feminicídio e pensamos em trazer para as nossas discussões essa pauta dentro das nossas realidades. Inclusive, decidimos homenagear nesta primeira edição uma escritora sertaneja que teve a sua vida interrompida drasticamente pelo companheiro, que é a Violeta Formiga”.

Mas Por que só agora surgiu a oportunidade de criar o Mulherio das Letras do Sertão?

– Vontade não faltou e falamos sobre isso desde 2017, muito já discutimos sobre esse desejo em várias oportunidades, inclusive, das vezes em que Maria Valéria Rezende veio ao sertão em eventos literários, ela sempre verbalizava esse desejo, que também sempre foi nosso. Agora com os editais da Lei Aldir Blanc nós decidimos submeter um projeto e tivemos a grata resposta positiva – respondem.

Antes que elas respirem, fazemos outra pergunta: Como é fazer literatura, em pleno sertão da Paraíba?

– Não é novidade que o mercado editorial, assim como o meio literário de forma geral, é machista, racista e isso é fácil de comprovar quando vemos quem está sendo publicado e fazendo sucesso nas maiores livrarias do país.  E embora tenha se escancarado essa realidade e uma luta mais efetiva tenha se travado para trazer as mulheres ao centro das discussões literárias, ainda não tivemos resultados que sejam considerados de fato satisfatórios. Muito ainda temos que correr atrás. Isso refletido no interior do país, especialmente no sertão da Paraíba, avançou menos ainda. As dificuldades são imensas e as ações ainda pouco efetivas. Alguns projetos, saraus, eventos acadêmicos ou puxados pelo Centro Cultural do Banco do Nordeste de Sousa, são nossas âncoras em algumas situações. Mas com relação a publicação, continua sendo um grande calo, encontrar mulheres sertanejas que publicam seus textos é difícil – enfatizam.

Para elas, eventos como o Mulherio das Letras é uma excelente maneira de trazer essa visibilidade, a partir do momento que todos os diálogos, todas as ações estão voltadas para a vivência de mulheres. “Especialmente quando abrimos espaço para a publicação de uma antologia, construída da forma mais simples e inclusiva possível, onde elas podem ecoar as suas escritas”, frisam. Sobre a antologia que será publicada pela Arribaçã, elas detalham que é uma janela aberta para as mulheres sertanejas se expressarem livremente através de seus textos, conduzindo os leitores para conhecer as diferentes experiências literárias entre novatas e veteranas, dialogando de maneira igualitária e gritando seus desejos de nós por nós. Entre os objetivos está o de mostrar que no sertão da Paraíba tem mulher que escreve e nada fica a dever para nenhuma outra região do país.

No momento, o Mulherio do Sertão está focado em realizar o evento, mas elas acreditam que a partir deste encontro várias alianças serão formadas entre mulheres de diferentes cidades. “Esse intercâmbio certamente será determinante para trazer uma união inédita, nos reconhecermos, fortalecermos enquanto mulheres que escrevem. Virgínia Woolf tinha uma preocupação em conhecer as mulheres que eram ótimas escritoras, mas nunca foram incentivadas. Essa preocupação é de todas nós, por isso o Mulherio das Letras existe, queremos encontrar essas mulheres e trazê-las para junto de nós pra dizer que elas não estão sozinhas e elas podem sim escrever que tem um mundo inteiro para ler”, conclamam.

 Quem é quem no Mulherio das Letras do Sertão

Mirian Oliveira é artista têxtil, professora de história na rede básica de ensino, pesquisa sobre imagens, saberes e experiências nas comunidades sertanejas e atua como produtora no alto sertão paraibano.

Lua Lacerda é natural de Cajazeiras-PB. mora atualmente em João Pessoa, onde faz graduação em jornalismo pela UFPB. Seu primeiro livro de poesia, ‘redemunho’, foi publicado em 2020 pela editora da UFPB.

Tainara Andrade é produtora cultural, militante pelos direitos das mulheres e dos LGBTQIAP+. Artista paraibana e sertaneja, trabalha com produções culturais e artes visuais, contemplando em seus trabalhos as assimetrias da realidade, através da representação dos seres e locais marginalizados.

Veruza Guedes é escritora, cineasta e produtora cultural. Tem textos publicados em coletâneas e livro didático. Publicou seu primeiro livro de crônicas ‘Os Baobás do Pirulito” em 2019 pela editora Arribaçã. Tem em seu currículo a experiência de coordenar eventos como o Cine Açude Grande, FLICA (Festa Literária de Cajazeiras) e a Feira Literária de Cajazeiras.

Confira o edital para a antologia:

 

EDITAL ANTOLOGIA MULHERIO DAS LETRAS DO SERTÃO PARAIBANO

  1. APRESENTAÇÃO:

Promovida pelo Mulherio das Letras do Sertão Paraibano, com o objetivo de divulgar autoras sertanejas nas categorias Conto, Crônica e Poesia, publicando seus textos sob o selo da Editora Arribaçã. A apresentação e lançamento será na noite de abertura do I Mulherio das Letras do Sertão Paraibano, a acontecer em abril de 2022.

“Realizado com recursos da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc. Lei Federal nº 14.017/2021 e suas alterações. Apoio: Secretaria de Estado Cultura/Governo do Estado da Paraíba Edital Prêmio Parrá Paraíba, 15 de fevereiro de 2022.”

  1. INSCRIÇÃO:
  2. Podem participar deste edital todas as mulheres paraibanas sertanejas (residentes ou não) ou que residam na Paraíba há pelo menos dois anos, que apresentem textos dentro do que se pede: poesia, conto ou crônica;
  3. As inscrições são gratuitas e vão até o dia 15 de março de 2022;
  4. É vetada a participação de escritoras que não sejam sertanejas paraibanas;
  5. Será de responsabilidade da candidata o compromisso de que o texto inscrito seja realmente de sua autoria;
  6. Antes de anexar o arquivo com a obra, a candidata deverá clicar no termo de aceite, indicando que concorda com os termos do Edital;
  7. Caberá à candidata indicar, na inscrição, um e-mail válido;
  8. Os textos apresentados não precisam ser inéditos;
  9. As escritoras podem se inscrever em mais de uma categoria;
  10. Cada escritora tem direito a enviar um texto por categoria escolhida;
  11. Os textos devem ser enviados no formato Word (documento), letra Times New Roman – tamanho 12;
  12. A obra deverá conter apenas textos, sem ilustrações, gráficos ou quaisquer tipos de imagens;
  13. Caso a inscrição não tenha seguido rigorosamente o edital, será invalidada, com a discriminação do que não foi cumprido.

III. JULGAMENTO:

  1. As obras inscritas serão analisadas por uma comissão julgadora composta pelas coordenadoras do evento;
  2. Os textos selecionados farão parte da Antologia Literária do Mulherio das Letras do Sertão Paraibano;
  3. O critério para análise e seleção das obras inscritas é o mérito literário, cabendo ao júri final a decisão, que será soberana.
  4. PREMIAÇÃO:
  5. O resultado da seleção será divulgado em 15 de março de 2022 em nossas redes sociais;
  6. A vencedora de cada categoria terá sua obra publicada pela editora Arribaçã, com uma tiragem inicial mínima de 300 exemplares. Cada vencedora receberá dois exemplares (podendo ser mais, dependendo da quantidade disponível após o resultado);
  7. A cerimônia de premiação está prevista para abril de 2022. Para mais detalhes acompanhe as redes sociais do evento.

 

Valéria Rezende: como tudo começou

 

Em 2017 surge o Mulherio das Letras, um movimento feminista que nasceu em mesinhas de bar, como muitos movimentos literários, a partir de conversas entre escritoras que, indignadas com a invisibilidade da mulher na literatura (não só na literatura, mas também nesta), refletiam, questionavam o porquê de não se encontrar mulheres ganhando prêmios literários, assim como a ausência e a pouca participação destas nas mesas temáticas em eventos de literatura.

Uma das principais coordenadoras do Movimento é a escritora Maria Valéria Rezende, natural de Santos/São Paulo, mas radicada na Paraíba há várias décadas, residindo em João Pessoa próximo à Praça da Paz, no Bancários. Valéria é autora de livros premiados no Brasil e no exterior e é muito querida e ouvida pelas escritoras de todo o país.

Voltando ao Mulherio das Letras. Foi desta inquietação na cabeça de várias mulheres espalhadas por todos os cantos que ganha vida durante a FLIP (Feira Literária de Paraty), em 2016, em meio à conversa de algumas escritoras, entre elas Maria Valéria Rezende e Conceição Evaristo, a ideia de se fazer um encontro de mulheres ligadas à literatura, sejam escritoras, leitoras, pesquisadoras, para se conhecerem e conversarem sobre suas inquietações, escritas e experiências.

Conversa vai, conversa vem, foi assim que surgiu também o próprio nome do movimento, afirma a escritora Maria Valéria Rezende. “Alguém disse: − Ah, por que não fazemos um mulherio das letras? E o nome ficou”, conta. Segundo Valéria, o movimento foi algo pensado em conjunto, as ideias foram se unindo e ganhando forma. “Outra pessoa disse, tem que ser fora do eixo Rio/São Paulo e outro alguém deu a ideia de se fazer em João pessoa”, acrescenta.

Maria Valéria Rezende sempre destaca a invisibilidade desproporcional da mulher na literatura nos últimos quatro anos, comparado ao número crescente de escritoras no Brasil. Lamenta, ainda, o fato delas não aparecerem nas mesas e entre os curadores dos eventos literários, pois há uma desigualdade muito grande em questão de gêneros. Foi assim que fez a chamada para o I Encontro Nacional do Mulherio das Letras.

Coube também à escritora a incumbência de criar o grupo fechado do Mulherio no Facebook. A resposta do público foi tão positiva que em pouco tempo surgiu a necessidade de criar um pequeno questionário que analisava a solicitação de entrada no grupo. Em mais alguns meses este chegava a faixa de 5 mil membros, mulheres de todos os lugares do país e também fora. Hoje, o grupo conta com a participação de mais de 6 mil mulheres.

Em 12 de outubro de 2017 aconteceu o encontro na capital da Paraíba. O movimento ocupou a cidade e mulheres chegavam de todos os lugares do país para a realização do I Encontro Nacional do Mulherio das Letras.

No evento, alguns acordos foram feitos: a proibição de discursos preconceituosos ou de ódio, não haveria monopólio, todas teriam o direito à fala e ainda, para haver de fato a democracia, este seria um movimento um tanto anarquista, não haveria mesas, nem qualquer tipo de líder ou algo parecido, é simplesmente um encontro nosso, feito para nós e por nós.

A única mesa foi a de abertura do encontro e contou com a participação das escritoras Lenita Estrela de Sá, Conceição Evaristo e a pesquisadora Algemira de Macedo Mendes e uma homenagem à escritora Maria Firmina dos Reis. Este primeiro momento aconteceu no auditório da Casa José Américo. Nos dias seguintes, o espaço de maior concentração foi o Espaço Cultural José Lins do Rego. Entretanto, o mulherio também acontecia em outros espaços como: armazéns, bares, auditórios.

O encontro chegou ao fim no dia 15 de outubro de 2017 com a apresentação da orquestra regida por uma maestrina e com o segundo encontro marcado para 2018 em Guarujá-SP.

 

(Matéria publicada no Correio das Artes, edição de março de 2022)

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