NA ESTANTE: A solidão como uso recreativo para fins de corporeidade

Por Johniere Alves Ribeiro

 

Corpo. Copo de solidão é o corpo. Digo isso, porque antes de qualquer ato movimentacional é no corpo fabril e febril que se elucubra toda uma massa de moléculas, células, ossos, músculos, saliva, membros e tudo mais possa compor nossa matéria, que também é e será pó. Só depois é que a solidão virá a ser e ter consciência. E se chegar a esse nível se dará ao fato de que a solidão já perdeu sua potência desejante e suas vibrações produtoras de um devir.

Por isso, afirmo que: a consciência é a mosca na sopa da solidão.

Daí, reafirmo, solidão é corpo.

É o que pulsa, mesmo sem se ver, como aquilo que está na microestrutura do ser humano. Como, por exemplo, na órbita celular onde tudo acontece no fora dos olhos; mas que tem uma atividade frenética na movimentação do criar.

Assim, se faz urgente recorrer à solidão nesses termos que implico aqui. Para tanto é necessário observar a solidão com a lanterna do conatus. Conatus na abordagem de Spinoza.

Corpo é solidão. Porque é no corpo que se desenvolve as cartografias dos afetos e afecções – tal como preconiza Deleuze Guattari na obra “Mil Platôs” – aspectos importantes para nossa constituição como gente. De modo que não se faz preponderante uma apresentação meramente ligada a um signo: a solidão, no qual leva a outro signo, que conduz a outro signo e a outro, e a outro, e a outro… Num mapeamento que gera decalques, alongamentos de fronteiras com um fim em si mesmo. Assim, é importante entender que a fronteira não é um ponto final. Fronteiras, no âmbito da multiplicidade, são recomeços. Indutoras de um “ir” em constância.

Nessa esteira, a solidão nunca deve ser concebida apenas como consciência. Por isso, creio que há uma necessidade crítica em torno da episteme relacionada aos conceitos de solidão na contemporaneidade. Para desterritorializá-lo. Para, assim, desconstruir e produzir um devir. “A solidão não se encontra, se faz. Solidão se faz sozinho. Eu a fiz “, diria Marguerite Duras, autora usada na epígrafe do livro “Solidão” de Clara Baccarin (Arribaçã, 2022).

Baccarin em seus dezessete contos me fez experienciar, mais do que  compreender, que a solidão está no fora da imaginação, requer uma práxis, fabricante de uma forma de existir. Por meio das narrativas elaboradas em “Solidão” passei a sentir e não só perceber racionalmente que a solidão opera como um acontecimento de potência. Da mesma potência que nos constitui enquanto ser vivente. Daí compreender a solidão como:

1) CORPO.

Zilda, Manoella, Júlia, Estela e outros personagens presentes nos contos do livro sentem bem essa potência que compõe o bojo da solitude. Até porque a solidão é a coluna dorsal da solidão, mais do que sinapses, é a nervura que conecta todas as mulheres postas ali nas histórias compostas por Clara.

Chamo a atenção para o estilo da escrita, pois os contos no livro aqui em questão têm um ritmo impressionante: “Ele nunca, por todos aqueles anos, tinha trabalhado tanto na vida, agora parecia estar sempre subindo de cargo na empresa, acordava bem cedo, voltava à noite, exausto e impaciente para ajudá-la na lida com o bebê recém-nascido …(p.12)”. Quem ler o conto inteiro verá que não é elogio o ato desse homem trabalhar tanto. Mas, não é sobre isso que quero falar. E sim sobre a solidão, inclusive de quem é casada e tem filhos.

Contudo, quero convidar os leitores a sentirem o ritmo, a pulsação das palavras. Tente ler em voz alta, depois em voz baixa. E vocês sentirão. Há modulações nas palavras, nas pontuações. Fiz esse exercício. Me senti fazendo uma oração, uma reza. Frases curtas, separadas por vírgulas e entre elas as frases entrecortadas, que dançam na nossa voz quando lemos os contos de Clara Baccarin no livro “Solidão”.

Cada tom. Cada som. Sílabas. Evocam sonoridades à boca. Fazem sentir que a solidão ementa sons. Tais recursos são explorados com qualidade pela autora, como podemos observar nos contos: “ Agora que você sangra”; “Virginia abençoada”; “Domingo”; “Ao alcance das mãos”. Esse aspecto ainda é forte na segunda parte do livro, chamado de “ Pequenas histórias de puérperas”.

Um conto que me atraiu os sentidos foi “A delicadeza de Alice”. Nele senti o alargamento das frases. Aspectos fortes de intertextualidades com livros (Bell  Hooks, Angela Davis), entre cinema e tudo sobre “mulheres correndo com seus lobos”. É um conto que promove trânsitos  “entre aspirinas e urubus”, São Jorge, cerveja artesanal e aluguéis, tudo vira dínamo que vibra e gera potencialidades de devir em ritornelos ressonantes de uma solidão corporificada no corpo.

Há em “A delicadeza de Alice” uma espécie de tom poético, mesmo estando no interior da prosa.

Mais do que input, temos output no construto dos contos de Clara Baccarin. Seja como resultado num processo da sua produção narratológica, seja como um mecanismo do qual a informação que esteja ali armazenada, ali processada é transposta para uma externalidade: saída. Para usar uma expressão de Deleuze e Guattari,  temos no livro “Solidão” zonas de fuga. Como uma espécie de travessia para uma saída da própria narrativa. Tenho apreço por escritos que desenvolvem com qualidade tal atitude estilística, aos seus leitores.

“Solidão” é o livro que crava os dentes na carne da solidão feminina. Bem como na estrutura social que enquadrou/enquadra a mulher: no vencimento de sua fertilidade, na maternidade, na amamentação bem como em todos os signos estabelecidos pelos códigos de uma sociedade patriarcal e falocêntrica. Cada um dos dezessete contos da obra, portanto, não é uma voz que ergue-se de alçapão unívoca. Não. De forma alguma.

O que temos nos escritos de Clara Baccarin é uma multiplicidade de vozes, é um coral, é uma multidão de mulheres que vocalizam em cada conto e, por conseguintes, na junção geral do livro elas tornam-se: 1) aquelas que passaram; 2) aquelas que são do hoje; 3) aquelas de alhures; 4) aquelas do além; e 5) devir o que é ainda mais potente. Todas, conectadas em um continuum, corroboram para a polifonia. Para uma plurissignificação que emerge de tais vocalizações, visto que já foram interpostas nas intermitências dos silenciamentos impostos pelo sistema patriarcal. De alguma forma, a imagem do sal no conto “Assim o almoço não sai” me chamou atenção por revelar parte de tal contexto machista da realidade que cerca o feminino:

 

“Vestia o avental verde e pisava a cozinha  – uma espécie de nave, recinto, templo. Nesse momento, era como se fechasse outras portas da casa, se desligasse de tudo[…] E o sal, e sua dosagem certa. O sal na saliva que lembra o mar, lugar que ela nunca esteve. O sal espalhado na palma da mão, branquinho como a areia fina do mar – pensava” (p.68-69).

 

Imagino: quanto de sal as mãos dos mais variados processos civilizatórios pesaram na cozinha da vida das mulheres no mundo todo? Pesaram o sal na saliva, contudo nunca lhes trouxeram o mar, as marcas de uma maresia. Por isso, solidão é  corpo, experiência corporal do sentir a solitude do sal de: Silvinha, Joana, Helena, nos contos de Clara Baccarin nesse seu novo livro.  Solidão não é transcender. É a imanência da afecção.

No caminho da solitude, não há epifanias como no famoso “Caminho de Swan” escrito por Proust, livro da primeira parte de “Em busca do tempo perdido”,  que apresenta o translado de Charles Swann da infância à maturidade. Em “Solidão” há também um caminho a seguir ao afeto de si, via a solitude. Como forma mantenedora de uma narrativa de si. Na qual tudo só é. Ponto. Não precisa de aditivos ou de “madeleine” submergida em chá.

Lembro nesse momento o mito de Sísifo. Não em uma convenção interpretativa tradicional da leitura da tragédia grega, que enxerga na pedra que rola apenas o seu sofrimento sisifico diário. Mas é urgente sentir o mito de Sísifo via o corpo de Sísifo. E que o seu corpo pode ser uma extensão da própria pedra. De modo que a pedra seja uma forma dele interagir e existir no mundo. E se ele também brinca com a pedra? E se Sísifo se reelabora e reinventa-se na rocha que desemboca sempre no mesmo lugar?

Ao retirarmos a consciência e transpormos para o sentir termos apenas as afecções e por meio delas os afetos. Sísifo/pedra, pedra/Sísifo gerarão, de alguma maneira, algo produtivo e potente, mesmo sendo Sísifo.

Portanto, é necessário enxergar algo estético no absurdo de Sísifo com sua pedra. Com sua montanha. No seu ir e vir solitário. Não podemos conceber Sísifo de sapatênis. Bem como não há um coaching para solidão. Todavia, imagino que Sísifo pode ter feito, quem sabe, o uso “recreativo” da pedra e da solidão.

Por essas. Por tudo dito. Pelo o que é do livro. É que nós do DE OLHO NA ESTANTE indicamos os contos de Clara Baccarin em “Solidão”.

 

* Johniere Alves Ribeiro é professor-doutor e resenhista parceiro da Arribaçã. O texto acima foi publicado na seção “DE OLHO NA ESTANTE”, em seu perfil no instagram: @johniere81

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O livro “Solidão”, de Clara Baccarin, pode ser adquirido no site da Arribaçã clicando AQUI

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