O amor nos tempos da web

Por Roberto Seabra*

 

Alguém já disse que o ato de escrever se assemelha ao do ourives. A partir da massa bruta do metal valioso, a pessoa que narra vai delineando sua joia, cobrindo as imperfeições, cortando as arestas e lapidando seu texto.

Mas, ao contrário de quem lida com pedras e metais preciosos, quem escreve mexe também com dores, amores, raivas, obsessões, paixões. E, a partir desse material instável, constrói seu mundo da ficção, que pode ser belo como um diamante, mas também feio, deslumbrante, triste, esperançoso.

A escritora Rosângela Vieira Rocha traz em seu novo livro Nenhum espelho reflete seu rosto (Arribaçã Editora, 2019) uma personagem que é dona de uma joalheria e também designer de joias. E que, ao falar do seu ofício, narra também sua história de envolvimento e desencanto amoroso.

Ao juntar as duas artes num só espaço – escrever e lapidar –, a autora vai além da mera metáfora. Ela cobre o que seria uma narrativa convencional (uma mulher relatando os abusos que sofreu de um parceiro perverso) com uma pátina de intertexto que transforma um caso de dor do amor em algo digno de ser romanceado. Com essa abordagem, ela foge da mera literatura de denúncia, o que no caso poderia se confundir com o jornalismo, a ciência ou mesmo o panfleto político, e faz literatura sem adjetivações.

No romance, Helen é uma mulher na casa dos 40 anos, solteira e empresária bem-sucedida, apesar do pequeno negócio de joias que dirige. De repente, ela se vê entrelaçada à vida de uma mulher desconhecida, que sofreu os mesmos abusos que ela, e do mesmo homem, um argentino chamado Ivan Hernández.

O psiquiatra que atende a mulher não identificada pede a ajuda de Helen para tentar entender o que aconteceu com sua paciente, que vive uma situação de depressão profunda.

É a partir desse enredo e dessa proposta narrativa que Rosângela Vieira Rocha usa a literatura para entrar num tema bastante atual e complexo: as relações tóxicas que surgem na internet e que, em geral, acabam mal.

Misto de romance epistolar e narrativa em primeira pessoa, em Nenhum espelho reflete seu rosto a personagem vai contando sua história de envolvimento com Ivan Hernández por intermédio de e-mails que envia ao psiquiatra da mulher misteriosa, ao mesmo tempo em que narra sua luta para se reerguer após a relação fracassada, que lhe custou não apenas dores, mas também algum prejuízo financeiro.

O romance mostra que a autora afundou a cabeça em dois mundos diferentes – o das relações amorosas construídas nas redes sociais da internet e o das pedras preciosas, uma antiga paixão de Rosângela Vieira Rocha – para construir uma história super original. Ao mesclar os dois universos, ela conseguiu escrever uma obra singular. O livro nos prende pelas duas histórias opostas e complementares.

Na primeira história, a personagem principal tenta entender por que se deixou dominar por uma relação doentia, e faz isso para ajudar outra mulher que vive o mesmo drama. A segunda história mostra essa mesma mulher batalhando para implantar seu negócio de joias fabricadas com pedras preciosas, um universo que Rosângela traz para a literatura com um incrível senso de oportunidade. Fisga o leitor curioso, ao trazer para a ficção o universo dos diamantes, esmeraldas e turmalinas, ao mesmo tempo em que desce as escadas ao porão de uma relação amorosa que acabou muito mal.

A psicanalista Junia de Vilhena, que assina o prefácio do livro, nota que a personagem Helen é uma mulher forte e criativa, e que por isso mesmo teria sido escolhida por Ivan, um narcisista perverso, para ser sua vítima. O mesmo perfil tem a mulher desconhecida, que só mostrará a identidade ao final do livro.

Rosângela Vieira Rocha é mineira e radicada em Brasília. É autora profícua e premiada. Tem 12 livros publicados, para adultos e crianças. Seu romance anterior (O indizível sentido do amor, 2017, Editora Patuá) trata da viuvez e mostra uma mulher (a própria autora) em busca do passado do marido falecido, um brilhante estudante de Física que nos anos 1970 fora preso e torturado pela ditadura militar.

Em Nenhum espelho reflete o seu rosto ela aborda novamente o tema da perversidade, mas que desta vez ocorre não mais no plano macro, engendrada por um Estado opressor, mas sim nas relações interpessoais.

Colocando os dois livros lado a lado, é como se a escritora dissesse para seus leitores e leitoras que não estamos livres das opressões, mesmo vivendo em um suposto regime democrático, e tendo todos os meios de comunicação disponíveis para nos informarmos.

Ao terminar a leitura do livro de Rosângela Vieira Rocha, é inevitável pensar que a praga do machismo, que em pleno século 21 já deveria ser algo superado, sobrevive no universo das redes sociais, tendo no personagem Ivan seu modelo perfeito. Ele é o típico macho narcisista, que se faz de moderno e com ideias liberais, para atacar suas presas. Conhece bem como funcionam as trocas afetivas pela internet, e usa esse conhecimento para ludibriar pessoas e sobreviver às custas de suas vítimas, como um vampiro moderno que suga a energia das presas virtuais e reais.

Nenhum espelho reflete seu rosto é literatura de primeira, que entretém, alerta e faz pensar, e além de tudo com uma proposta narrativa inovadora. Afinal, para isso (também) serve a arte: ajudar a superar nossas dores e clarear nossas dúvidas, sem perder de vista a perspectiva estética do belo.

(Publicado no Jornal de Brasília. Link: https://jornaldebrasilia.com.br/clica-brasilia/literatura/o-amor-nos-tempos-da-web/?fbclid=IwAR0zbWFaqkHZm6u758KDnwT6oeBKf02Ebw5LlPjuluwePcId6a3yfVkG5w4)

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