“O Brasil não te merece!”

Ronaldo Cagiano

 

Solha, meu caro,

mergulhei no seu livro, absorvido pelo arsenal de referenciais e pela sua linguagem polissêmica, polifônica, caleidoscópica.

Vou te dizer uma coisa, não sei se isso te ofende, mas, camarada, o Brasil não te merece. A sua expressão artística é pra sociedades e mentes mais evoluídas, não cabe nesse vazio civilizacional em que estamos metidos; é biscoito fino, ouro sobre o azul, oásis em meio ao deserto em que se transformou a literatura brasileira, hoje bestializada pelos fetiches do Deus mercado. A leitura de ” O irreal e a suspensão da credulidade” consolida uma impressão que sempre tive de sua literatura: você não é um escritor para principiantes. Sua escrita é dedo na ferida, soco no estômago, chute no calcanhar de aquiles, lâmina na jugular da insensatez, da ignorância, da selvageria, da incivilidade e da burrice dominantes. Quem tiver juízo e inteligência que pare o que está fazendo para mergulhar no vórtice dessa poesia incontida e avassaladora, que não deixa pedra sobre pedra, e pinta (como Picasso fez ao denunciar o horror e a medievalização da vida) um Guernica narrativo, onde navega em todos os tristes tempos da humanidade, dos trópicos aos meridianos, da Odisseia ao Grande sertão. As veredas estão aí – existenciais, estéticas, psicológicas, emocionais, filosóficas, escatológicas – por você percorridas com os pés descalços na aridez da pequenez humana e da grandeza da arte, esta a única capaz de dar conta de uma realidade que superou a ficção.

Lembrei-me de “Viagem na Irrealidade Quotidiana”, do Umberto Eco, seu acervo de textos críticos, reflexivos, filosóficos que rastreia com o mesmo sentido ontológico e hermenêutico que “O irreal e a suspensão da credulidade” o que há de verdade e de mentira no mundo, dos apogeus aos declínios, mas sem dar de mão beijada ao leitor, porque este precisa penetrar, como um Borges, os espelhos, labirintos e signos de tanta perplexidade.

O seu olhar é de escafandrista, a sua pena é bisturi no cipoal das ideologias e no pensamento mais agudo; e mais que tudo, confronta esse milênio que mal começou e já dá sinais de exaustão, de escalonamento da consciência pensante por um estágio nas hostes da inteligência artificial, de pandemias que devoram, à ditadura do politicamente correto que cria seus talibãs críticos, com os torquemadas, cambises e catilinas das redes sociais a nos cancelarem e execrarem. Eis sua palavra, ela vem na contramão desse pout-pourri de podes-não-podes, deves-não-deves, de deificação dos medíocres (na política, nas artes, da literatura) em que somos requalificados em nossos gostos, exigências, bandeiras, temáticas, escolhas, opções com terminologias que esgotam um alfabeto, e nesse viver-pisando-em-ovos, tudo parece perder sentido para uma existência e uma prática controladas e/ou sequestradas por retóricas e pela vigilância dos censores terminológicos. Tudo para dar mais poder a um poder que se articula ou se metamorfoseia em outras formas de controle e posturas inquisitoriais. Nesse mundo sem resposta, você acena com uma poesia que resiste a andar de braço dado com bom-mocismo estético, que mais dúvidas traz que certezas apopléticas, pois converte-se em uma panóplia de insurgências e um arsenal de dúvidas a colocarem a razão e a sensibilidade no banco dos réus, julgadas pela fina ironia e a profunda sacudida no marasmo em que nos enfiamos até ao pescoço, levados pelo turbilhão do virtualismo e da individualidade que a era tecnológica e sua (aparente) zona de conforto nos legou.

O “irreal e a suspensão da credulidade” é um testemunho visceral de um inconformismo estético de uma abominação ética a tudo (e a todos os imbecilizados) que aí estão.

Se “só a arte salva o homem de sua total imbecilidade”, como disse Alfredo Bosi, a sua escrita é passaporte para escaparmos a esse naufrágio.

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O livro “O irreal e a suspensão da credulidade: Sexto tratado poético-filosófico”, de W.J. Solha pode ser adquirido AQUI

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