O coração pensa constantemente, de Rosângela Vieira Rocha

“O coração pensa constantemente” (Arribaçã, 2020), de Rosângela Vieira Rocha

Por Mariana Belize

 

O luto tem suas fases, sem dúvidas. O que não se aborda diretamente é que essas fases não são medidas cronologicamente e que elas também não apontam para o fim do luto, mas apenas para a aceitação e a continuidade da vida do enlutado. Sartre inclusive assevera que a morte é uma questão para os vivos, pois são eles que lidam diretamente com a presença da morte.

Além disso, o caráter definitivo que a morte possui traz para o ser humano uma lida com a ausência que se infiltrará no seu cotidiano para sempre. O luto não tem fim. Segue-se a vida, apesar dele, apesar da ausência, apesar das interrogações ligadas à morte. Esse é o esperado. É esperado que seja possível viver apesar da saudade, essa companheira da perda e além dela, com as memórias da pessoa ausente.

“É quarta-feira, mas não há praticamente ninguém na quadra, só carros estacionados, dezenas. Um silêncio raro, absolutamente incomum, toma conta de tudo. De repente, me lembro de uma canção que fez sucesso nos anos sessenta, ‘Une dimanche après le fin du monde’. É essa a sensação: o mundo acabou, não há ninguém mais, nenhum som, nenhuma voz humana. E é domingo.” (p. 87)

 

Quando se trata da relação entre memória e literatura, o maior expoente literário no ocidente é, sem dúvidas, o francês Marcel Proust e seus volumes de Em busca do tempo perdido. As madeleines, como metáforas da memória, permanecem inscritas no paladar de seus leitores, ainda que não as tenhamos provado diretamente. É através do gosto delas que o narrador mergulha no imperioso mundo das memórias. Além do paladar, também o olfato é uma fonte para o encontro com a memória. Essa relação do surgimento de uma lembrança com a nossa experiência sensível é de fundamental importância para a compreensão da memória.

 

“A princípio, o cheiro me atrai. Bacalhau era o seu prato predileto. Mas em poucos segundos começa a náusea” (p.13)

 

Já no quadro “De onde viemos? O que somos? Para onde vamos?” do pintor francês Paul Gauguin, a morte aparece simbolicamente representada como aspecto natural da passagem do tempo. Ela continua inexplicável, mas aparece no quadro como uma interrogação que faz parte da vida de todos. É também através de símbolos que o artista traça seu pensamento a cerca de um tempo mítico e sua relação com nosso tempo cronológico. O quadro foi pintado por Gauguin após uma tentativa de suícidio mal sucedida. Verificou ele que a perturbação ligada ao existir permanecia enquanto vida tivesse e por isso, por não compreender, por não conseguir responder, transformou em arte as perguntas fundamentais da existência humana que dão título ao quadro.

Em O coração pensa constantemente, livro de Rosângela Vieira Rocha publicado em 2020 pela Editora Arribaçã, a existência é o tema central. Não é a morte a protagonista, não se engane – mas a vida. A vida, as vivências, necessidades e memórias dos personagens que tecem esse cenário temporal complexo no livro de Rosângela, através da narradora Luísa e sua experiência com o luto pela morte da irmã Rubi.

A trama temporal se enreda na presença de vários tempos, através das memórias tecidas por Luísa, sobre sua família, seus diálogos com a irmã, sua visão de mundo e também de suas outras perdas: a infância, o marido e outros pequenos lutos cotidianos. Luísa nem por isso é uma personagem sombria. Sua percepção reflete uma confusão diante dos acontecimentos do presente, como a pandemia, numa íntima relação às vivências do luto e também das lembranças trazidas através dos sentidos.

Ao debruçar-se sobre a vida e refletir sobre a passagem do tempo, Rosângela percorre o caminho literário mais tortuoso ao tratar de temas inconclusos, sem respostas. Ao tratar da memória e do tempo, sabe que também abraça literariamente o mistério da morte, as perguntas sem resposta e os medos humanos que advém da lida com esse fenômeno, com essa figura que aterroriza, porém curiosamente parece amedrontar menos e menos quanto mais perto estamos dela, quanto mais bem resolvidos com a vida estamos, ou sabe lá se isso é possível.

Walter Benjamin no seu clássico ensaio O narrador nos relembra que o momento da morte carregava uma revelação para aquele que morria, revelação essa que se transformava numa história para aqueles que ficavam. Uma narrativa primordial que preenchia um espaço que a ausência da figura deixava na vida dos que ficavam.

Mas hoje morremos cada vez mais sozinhos. Não sem nossas narrativas, essas vão conosco onde quer que seja. Mas sem ouvidos que ouçam, sem corações que guardem e pensem constantemente em quem fomos nós para os que ficam. Nessa contemporaneidade, qual o espaço da morte? E com a pandemia, onde fica nosso pensamento sobre a Indesejada das Gentes?

Rosângela Vieira Rocha traça um panorama sensível sobre temas inesgotáveis e desconfortáveis para a maioria, como o luto, a morte, a convivência em família. Há muitas faltas em jogo na literatura de Rosângela, lacunas da vida e da convivência com os outros que, mesmo quando próximos, ainda permanecem misteriosos. No final da leitura, a sensação é que não conhecemos Rubi verdadeiramente, e nem mesmo Luísa, sabendo da vida que narra, também não a conhecia tão bem. A morte tem dessas. Quem é que pode dizer que conhece o Outro, mesmo ele estando sob nosso olhar? Rubi segue para nós, leitores, um grande mistério… como misteriosamente segue também o Outro Lado. (Se é que há outro lado.)

A vivência do luto, através dele, por dentro dele, que Luísa divide conosco é de uma tessitura entre o íntimo e, portanto, do subjetivo, mas também possuindo uma perspectiva que escancara o aspecto temporal do luto que vivemos como humanidade neste momento atual. E se for da perspectiva brasileira então… sem comentários.

 

“Vou lhe contar algo que descobri: cada luto é único. Nenhuma perda se parece com a outra. De nada serve ter frequentado essa ‘escola’, pois não aprendizagem e muito menos diplomas. Ninguém está preparado para a morte.” (p. 16)

 

O trabalho de Rosângela com as metáforas por toda a narrativa é esplendoroso, seja pela construção da complexidade relativa às relações entre Saturno e Netuno, do ponto de vista astrológico, seja também pela escolha do apelido para a irmã. Também a multiplicidade de referências temporais, literárias e artísticas que são pontuadas nos capítulos, trazem para a narrativa uma diversidade de prismas para a construção das personagens.

Ao debruçar-se sobre o tema da morte, Luísa demonstra, na sua limitação, a limitação humana geral e aí se inscreve, ao mesmo tempo, a personagem e a autora na mesma inconformação: “Quando o tema é morte, sinto que caio na esparrela, na armadilha da escrita.” E o outro parágrafo após esse é um pensamento crítico de alto grau sobre um de nossos dilemas fundamentais como escritores: como dizer sobre o indizível?

Rosângela responde a esse desafio de forma ainda mais primorosa: entrega a escrita à Morte, personificando-a. Ali, cada leitor será capaz de ouvi-la. Não como aterrorizante figura, mas como mulher acolhedora.

Rosângela Vieira Rocha debruça-se sobre esses nossos indizíveis e com a maestria da tessitura entre sensibilidade e extremo rigor estético, traça um dos panoramas mais corajosos sobre nossos Tempos. Saturno assim se mostra através de sua escrita com sua ambiguidade fundamental: devorador tirânico de seus filhos, é ele, ao mesmo tempo Sabedoria, Colheita, Força e… Mistério.

A morte é, na narrativa, uma “mulher acolhedora e de seios fartos. Tenho alimento para todos e os recebo sem nenhuma distinção.” (p. 181) Ressignificada, ela mostra sua generosidade. Ainda assim, dói em quem fica. O luto é dos vivos, nos relembra Sartre.

E para Luísa, como também para os leitores, Rubi permanece. “É isso que você representou e sempre representará para mim: uma pedra cintilante, colorida, multifacetada, cujo brilho ao sol, dependendo do ângulo, é capaz até de cegar os mais desavisados. Cor de sangue, o mesmo tipo de sangue que corre em mim e que também cessará seu fluxo, quando chegar o momento.” (p. 194) Ao abraçar o mistério da própria mortalidade, Luísa aprofunda-se ainda mais como personagem, encontrando o mistério também do leitor.

Mil perguntas permanecem conosco após a leitura. Podem ser resumidas, no entanto, no título do belo quadro de Gauguin: De onde viemos? O que somos? Para onde vamos?

 

Mariana Belize é Mestra em Literatura brasileira/UFRJ e formada em Letras pela UFRRJ.

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