Por José Mário da Silva
Assim como já o fizera com “Longe daqui, aqui mesmo: a poética de Mário Quintana”; “A Casa e seus Arredores”; “O leitor que eu sou”; e, por fim, com “O leitor que escreve”, o poeta Sérgio de Castro Pinto, com a publicação de “O leitor de si mesmo” (Arribaçã Editora, 2022), reafirma o seu infrangível compromisso com o cultivo de um ensaísmo leve, breve, mas sobremaneira arguto no relacionamento afetivo, efetivo e crítico que mantém com a produção literária emanada de um diversificado número de autores, a maioria deles radicada na geografia do Estado da Paraíba. De pronto damo-nos conta de que estamos diante de um escritor profundamente atento ao que se passa no âmbito da literatura brasileira contemporânea, tendo em mira, privilegiadamente, os frutos que vicejam na espacialidade das mais variadas regiões do país, com especialidade, os que emergendo solo paraibano.
Em última análise, conquanto inarredavelmente vinculada às molduras contextuais que lhe presidem o surgimento, a literatura, em seu indesviável cerne de arte que se potencializa pelo caráter criativo e polissêmico da linguagem, atemporaliza-se, conforme, tão brilhantemente, pontuou o ensaísta Raul Castagnino, em seu clássico livro: Que é Literatura?
As considerações levadas a cabo por Raul Castagnino, todas elas voltadas para o deslindamento das principais funções da literatura, foram repercutidas, entre nós, numa pertinente síntese conceitual elaborada pela mestra Nelly Novaes Coelho, em seu importante livro Literatura & Linguagem. Conforme sinalizamos, os escritos de Sérgio de Castro Pinto, todos eles, originariamente, publicados no prestigiado espaço do legendário Jornal A União, pautam-se por uma linguagem fluida, didática, sobremodo comunicativa em seu alcance. Com a objetividade caracterizadora do seu estilo ático, Sérgio de Castro Pinto promove um diálogo sensível com as obras com as quais interage; e, sobre as quais, se pronuncia. A opção de Sérgio de Castro Pinto foi pelo universo roçante do ensaio.
Paradigmatizado pelos escritos de Michel de Montaigne, o ensaio, gênero eminentemente híbrido e assumidamente destituído de fronteiras rígidas e demarcáveis, constitui-se numa aventura, aberta e descentrada, da inteligência, da imaginação e da sensibilidade humana, sobre o corpo movediço da realidade e sobre o dorso escorregadio da linguagem. O seu interesse é menos pela chegada que pelas trepidações da viagem, do percurso, sempre marcado pelo signo da liberdade criadora e pelo selo do antidogmatismo interpretativo. É por essa seara que se move Sérgio de Castro Pinto, tanto enquanto leitor de si mesmo quanto leitor dos muitos outros, os quais ele toma como ponto de partida e de chegada das suas cogitações críticas mais prementes. Transitando entre a racionalidade do teórico da literatura e o intuicionismo do poeta, Sérgio de Castro Pinto, em seu itinerário ensaístico, abriga os discursos da poesia, da ficção, da crônica, do ensaio, enfim, dos diversos registros em que se consubstancia a pluridimensional palavra da literatura.
Embora aberto aos variados caminhos engendrados pela literatura em seu ato-processo de recriar, de maneira transfigurada, o real, Sérgio de Castro Pinto não perde de vista que a literatura, em sua ontologia íntima, constitui-se, fundamentalmente, num trabalho rigoroso com a linguagem, sem se desconectar, evidentemente, das fontes primarias da vida.
Eis a razão pela qual, por exemplo, ao discorrer sobre a poesia panfletária, mostra e demonstra que ela, frequentemente, é mais panfleto que poesia, mais conteudismo denotado que forma estética capaz de fundar numerosos e multiplicados sentidos. É que, produtor competente da arte literária, Sérgio de Castro Pinto sabe, à luz das lições ministradas por Décio Pignatari em O que é comunicação poética, que “o poeta é um fazedor de linguagem”. Com Jean Paul Sartre aprendemos que “o poeta não é aquele que se serve das palavras, mas sim aquele que serve às palavras”, lição, frequentemente, desassimilada pelos que ignoram que “poesia é grito, mas grito transfigurado”, de acordo com as lúcidas palavras da imensa Cecília Meireles. Os poetas, ditos marginais, por exemplo, se esmeraram tanto em fazer da arte um instrumento político que findaram, por esquecimento ou falta de destreza mesmo, deixando a poesia, muito raramente frequentadora dos seus versos, nas margens, quase invisibilizada.
No texto Nem sempre é como lhe parece, Sérgio de Castro Pinto reflete sobre outra lição basilar da Teoria da Literatura, a que nos ensina a não estabelecermos entre o texto literário e a biografia de um autor relações de causa e efeito rígidas e dogmáticas. Nesse percurso hermenêutico, Sérgio de Castro Pinto invoca e evoca o paradigmático poema Autopsicografia, do genial Fernando Pessoa, para mostrar que, na composição do texto literário, mormente do poema, as relações entre a arte e a vida adensam-se em interações complexas e timbradas pelo selo da dialética mais emblematicamente posta em cena. Em O meu compadre Luciano Morais, avulta, em tonalidade, indisfarçavelmente, afetiva, o código da amizade, que, de uma hora para outra, é interditada pela chegada da Indesejada das gentes, da iniludível, metáforas com as quais Manuel Bandeira se referiu à morte no excepcional poema Consoada.
Em boa e oportuna perspectiva memorialística, Sérgio de Castro Pinto revisita a importante figura de Olívio Montenegro, admirável crítico literário paraibano, que nasceu na cidade de Guarabira, autor, dentre outros, de O Romance Brasileiro, livro, no qual o aludido crítico realiza qualificadas leituras de importantes nomes do romance brasileiro. Etiquetado, por alguns sectários arautos da chamada nova crítica, de impressionista, Olívio Montenegro, como tantos outros estudiosos do fenômeno literário, caiu no injusto esquecimento. Esquecimento que, aqui na Paraíba, foi atenuado pelo magnífico trabalho levado a cabo pelo juiz federal José Fernandes de Andrade, que, assim como tem feito com outros escritores, reeditou O Romance Brasileiro; e, também, pelo próprio Sérgio de Castro Pinto, que o inseriu no horizonte de expectativas das suas sempre lúcidas apreciações críticas.
Em suma: em O leitor de si mesmo, Sérgio de Castro Pinto põe o seu domicílio crítico em trânsito; trânsito esse garantido pela cativante e sedutora arte da leitura, por meio da qual o leitor, mesmo de si mesmo, alarga o seu compasso e vai à procura do outro, mesmo porque, como doutrina o mestre Eduardo Portella, “nós somos um ser para o outro e fora do diálogo o que existe é o precipício”.
Texto publicado no jornal A União em 27 de abril de 2023.
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O livro “O leitor de si mesmo”, de Sérgio de Castro Pinto, pode ser adquirido no site da Arribaçã clicando AQUI