Mal comparando, o meu livro “O leitor que escreve” (Arribaçã Editora, Cajazeiras, Paraíba, 2020) guarda alguma semelhança com o centão, recurso poético do qual se vale o autor para, extraindo versos de vários poemas de sua própria lavra, conceber um novo (?) poema, como o fez Manuel Bandeira com “Antologia”, cujo título, etimologicamente, significa recolho das melhores flores, ou, no caso, dos melhores poemas.
Com efeito, para escrever “Antologia”, Manuel Bandeira escolheu a dedo alguns versos dos poemas “Consoada”, “Profundamente”, “Vou-me embora pra Pasárgada”, “Pneumotórax”, entre outros, num procedimento intramuros ou intratextual.
No caso do meu livro, algumas vezes migrei, de um texto para outro, frases que julgava mais expressivas, assim como ideias que me forneceram suportes ou pontos de apoio para ressaltar recursos estilísticos idênticos entre dois ou mais poetas e ficcionistas. Em suma, não sou eu que me repito, mas os autores que ratificam uma série de repertórios estilísticos que mantêm uma certa similitude entre si.
Quando eu escrevo – na esteira do Walt Whitman, de “Folhas de relva” – que quem toca na pintura de Flávio Tavares e no poema de Fernando Monteiro, toca em ambos, eu não o faço movido pelo desejo puro e simples da repetição, mas pela razão de um e outro imprimirem às suas obras a personalidade que os caracteriza. Diga-se o mesmo com relação a uma frase que Manuel Bandeira tomou de empréstimo a Wagner, para usá-la a respeito dos que excluem de sua obra a “marca suja da vida”: “(…) numa de suas páginas, Wagner contou nunca exprimir o que via, mas o que sentia a propósito do que via, quando a maioria dos poetas brasileiros – conclui o autor de “Libertinagem” – conta apenas não propriamente o que veem, mas o que leem”. Se utilizei essa frase duas ou três vezes, tenho plena consciência de que o contexto estava a reivindicá-la.
Estou aqui a recordar das muitas leituras que fiz de “Cem anos de solidão”, de Gabriel Garcia Márquez, mais especificamente de uma personagem da saga dos Buendia que, em consequência da cegueira, aguçou todos os sentidos, sobretudo o da audição, passando a escutar desde os ruídos mais inaudíveis das coisas, da natureza, dos animais, até a fala e a balbúrdia dos homens. Desses, fossem homem, mulher, velho ou criança, a sua apurada observação pôde constatar, entre outras coisas, que muitos se repetiam invariavelmente num mesmo horário: ora quando tossiam, ora quando respiravam fundo, ora quando recorriam às mesmas palavras, ora quando… Saí da leitura de “Cem anos de solidão” acreditando que todos nos repetimos em maior ou menor grau; que empregamos as mesmas palavras, os mesmos raciocínios, e que escrevemos à exaustão o mesmíssimo poema durante toda a vida, conforme preconiza o argentino Borges em uma de suas boutades.
Relendo alguns ensaios do “Jornal literário”, de Valdemar Cavalcanti, dei com um texto sobre José Lins do Rego do qual transcrevo apenas um fragmento: “(…) E é de ressaltar ainda a unidade de pensamento estético de José Lins, à vista de suas crônicas de jornal: o que ele dizia aos 22, aos 25 anos, a propósito das ligações da vida com a literatura, a respeito da humanização da ciência, acerca de linguagem e estilo, sempre haveria de repetir a cada passo, com insistência que não era a do pastor à cata de prosélitos”.
E arremata: “Mas, em literatura, como na vida mesma, há uma coisa pior que repetir ideias, sentimentos ou frases: é não ter o homem ideias, sentimentos ou frases para repetir, ou por haver variado demais ou por haver secado”.
Dou prazo aos céus por ainda ter “sentimentos ou frases para repetir”, do contrário já teria exaurido, esgotado o filão, o débil manancial das minhas ideias e dado os trâmites por findos. Quanto a corroborar hoje o que pensava aos 22, aos 25 anos, devo dizer que, diferentemente de Zé Lins, já não abraço parte substancial das causas que abracei quando jovem. Hoje, o meu gosto literário é bem mais eclético, receptivo aos poetas que julgava caudalosos, a exemplo de Augusto Frederico Schmidt e Pablo Neruda. Em contrapartida, já não morro de amores por Guimarães Rosa, cabendo aqui uma indagação machadiana: Mudou Guimarães Rosa ou mudei eu?
Por último, um apelo aos leitores: não os desejo condescendentes, mas atentos à advertência que fiz na abertura do livro: “Este O Leitor que escreve dá prosseguimento aos livros A Casa e seus arredores e O Leitor que eu sou, compondo uma espécie de trilogia em que reúno parte de minha produção literária no jornalismo cultural paraibano. // O título dessa obra fala por si, pois expõe de forma cabal o meu juízo a respeito de quem escreveu os textos que integram esse e os outros dois volumes anteriormente citados. Ou seja, longe de me considerar um crítico, avalio-me apenas um leitor voraz e veraz, enfim, um leitor que escreve, o que já me satisfaz plenamente”
(Sérgio de Castro Pinto é doutor em literatura, professor e poeta. O texto acima foi publicado no blogue “Ambiente de Leitura Carlos Romero”, em 2 de julho de 2020)