Por Edival Lourenço
Literatura não é verdade, nem mentira. É a flutuação da realidade. No dizer do crítico literário britânico James Wood “é, ao mesmo tempo, artifício e verossimilhança”. Ou seja, uma substância bidestilada pela alquimia do autor, constituída de símbolos, que não é a realidade por si mesma, mas de onde se pode extrair a realidade. Só a ficção é capaz de nos traduzir a verdade possível, em seu grau mais intenso e profundo. A verdade retratada por si mesma há de ser sempre rasa, frívola e supérflua. Logo, não há equívoco no clichê que diz que “a vida imita a arte”. Só mesmo através da arte é que podemos, ainda que não completamente, compreender a vida.
No cenário pós-diluviano, a Pomba de Noé foi encarregada de empreender uma expedição e trazer um relatório das condições climáticas do mundo lá fora. Não nos esqueçamos de que o mundo está durante todo o tempo se acabando e se reconstituído outra vez. O dilúvio é apenas um símbolo extremo desse fenômeno procedimental. O escritor age como a Pomba de Noé. No entanto, nem sempre sua viagem se dá apenas para o mundo exterior, mas, ao mesmo tempo, para o interior do ser, de lá trazendo, se não o ser em sua inteireza, pelo menos retalhos de sua realidade mais íntima, que podem ser montados, que nem um quebra-cabeça, pelo tirocínio do leitor. E assim afigurar algo que mais se aproxime da realidade.
Os singelos prolegômenos são apenas para dizer que a escritora Cássia Fernandes reuniu o que há de mais apurado em técnicas narrativas para se imiscuir no mundo amalucado que emerge dos anos da chamada “Revolução Jovem”, da era dos beatniks e dos hippies, até nossos dias da Covid e da febre das selfies. E desse mundo trazer retalhos simbólicos para que possamos compreender o período (in)civilizacional que, apesar da leveza preconizada pelos jovens do slogan Paz & Amor, resultou na brutalidade monstruosa e globalizante da direita radical tradicionalista.
Ressalte-se que o leitor não encontrará um tratado sociológico, mas uma obra da mais genuína ficção. A sociologia, se houver, será por conta do leitor que, ao destilar mais uma vez o que a autora entrega, alcançará esse entendimento.
Histórias encantadas entre cordilheiras de areia, de Cássia Fernandes, é um romance de realismo fantástico, só que num tom um tanto sutil, mais próximo de Murilo Rubião e José J. Veiga, do que de Jorge Luis Borges, Bioy Casares ou Gabriel García Márquez. No entanto, pelos simples aspectos de que as protagonistas Amapola e Varsória, que estão mortas, mas levam vida mundana de entidades vivas, o romance se aproxima um pouco de Juan Rulfo, em Pedro Páramo, ou de Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Uma história saborosa, com laivos de humor nonsense, que às vezes até lembra Richard Brautigan, em Pescar truta na América, ressalvando que essas comparações, um tanto arbitrárias, são apenas tentativas deste leitor privilegiado em estabelecer referências, porque Cássia Fernandes é uma autora experimentada, talentosa, com voz própria e em pleno domínio de seu ofício, como já ficou amplamente demonstrando em outras obras em prosa e verso. No entanto, como literatura é também uma sedimentação do engenho humano, daí se justificam essas comparações com que outros leitores podem concordar ou não.
Talvez graças ao ímã inerente ao nome Anhangás, palavra escolhida por Cássia para nomear o povoado fictício inspirado em Jericoacoara, antiga vila de pescadores no Ceará, o lugar se torna um microcosmo perfeito, para onde converge toda sorte de bicho-grilo, nacional e internacional, munha resultante da moagem dos valores e ideias, nos últimos 60 anos.
De acordo com a própria autora, “o nome Anhangás é uma referência a uma das versões do mito indígena do Anhanga, palavra de origem tupi segundo o folclorista pernambucano Câmara Cascudo, uma entidade protetora dos animais, especialmente fêmeas prenhes (qualquer animal que choca ou cria), representada por um veado com olhos de fogo. Em outras das muitas versões do mito, que podem ter sido criadas, conforme o folclorista, também por contato com expressões e mitos de origem africana, no que ele denomina de ‘mitos de confusão verbal’, a figura do Anhanga passou a ser identificado também como o diabo e o mau espírito. O termo deu origem a nomes como o Anhanguera, o diabo velho, referência ao bandeirante paulista Bartolomeu Bueno da Silva, que explorou a região central do Brasil, especialmente o estado de Goiás, e ao Vale do Anhangabaú (rio dos malefícios do diabo), no estado de São Paulo.”
É nesse micromundo de “mitos de confusão verbal” que Cássia Fernandes, mui habilmente, insere seus personagens em marcha, num turbilhão de fatos e sensações. Arrasta para o contexto crenças, mitos e superstições, que estão na base da cultura popular, e contribuem fortemente para o povo brasileiro ser o que é. Até um fato ocorrido no Zoológico de Goiânia (GO), em que uma jacaré-açu, a maior do Brasil em cativeiro, de nome Jacira, trucidava todos os machos que eram colocados em sua jaula, para cruzarem com ela. Após um exame mais acurado, descobriu-se que Jacira era, na verdade, Jacinto. Talvez e por certo, a jacaré entra como um símbolo da liberdade de gênero, preconizada pelos preceitos libertários mais em voga. Ou até como referência a uma fala desgraçadamente infeliz de um certo “mito” nacional, especialista em propagar o negacionismo e o ódio.
Não cabe aqui, nem de longe, fazer spoiler. No entanto, posso afiançar aos leitores e leitoras que o romance propiciará um percurso prazeroso, com um final surpreendente.
* Ex-presidente da UBE – GO, ocupante da cadeira 22 da Academia Goiana de Letras, ex-secretário de Cultura de Goiás, autor do romance Naqueles morros, depois da chuva, prêmio Jabuti de 2012.
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O livro “Histórias encantadas entre cordilheiras de areia”, de Cássia Fernandes, pode ser adquirido AQUI