Em tempos de fusões e hibridismos, é uma delícia ler um livro que lida com formatos poéticos rapidamente identificáveis. Por constituir-se de uma poesia que prescinde de modismos para parecer conectada com a atualidade, CORAÇÃO ARLEQUIM consegue dizer o que tem para dizer de forma clara, sem precisar apelar para nenhuma estratégia. Eis um dos diferenciais deste livro: ele é o que é, sem precisar inventar ser outra coisa. Atualmente, a clareza da mensagem poética é um atributo cada vez mais raro, e a autora destaca-se exatamente por ter uma obra acessível a diversos tipos de público, sem cair nas armadilhas do simplismo.
Os poemas da primeira parte do livro abordam temáticas diversas com leveza, mas também com veemência quando se direcionam a graves problemas sociais. A flexibilidade estilística de Márcia Sanchez Luz não se atém apenas a um formato, propiciando-nos uma leitura repleta de variados ritmos e tons: na maioria são poemas minimalistas – tercetos, trovas, haicais e poemas curtos –, embora os maiores, como Quarentaine, sejam igualmente intensos.
Para restringir-me ao mínimo de spoiler possível, anteciparei apenas dois poemas do bloco poético inicial:
Ocaso de inverno:
sol em fogo, apaixonado,
deita e apaga as árvores.
Modernidade líquida
Deu pane
no liquidificador
atômico.
O primeiro exemplo ilustrativo é um haicai com métrica 5 – 7 – 5 e kigo de inverno, ou de tarde (o kigo é a palavra que liga o poema a uma das quatro estações ou a manifestações da natureza). Frise-se a riquíssima metáfora de um poente que vai lentamente apagando a sua claridade para as árvores poderem dormir e descansar. Neste dégradé de matizes, a cena é delicada, como o gesto de carinho de um amigo ou pai amoroso. Não há tristeza, apenas beleza; o crepúsculo não inquieta, nem entristece; ao contrário, enternece, despertando em nós enorme paz interior. Uma outra interpretação deste haicai, propiciada pela conotatividade da linguagem poética, é a imagem do entardecer de um afeto que vai lentamente esmaecendo, mas que traz em si a possibilidade de ressurgir forte e belo em alguma nova manhã.
O segundo poema, escrito em um tom bastante diferente do primeiro, possui um compasso elétrico, acelerado, condizente com a nossa atual Modernidade Líquida: uma ótica impactante e gigantesca do que o mundo se transformou, misturando/triturando/picando nossas mais significativas experiências cotidianas, diluindo perspectivas, anseios, e sentimentos sólidos – chegamos quase a ouvir o som incômodo e frenético das hélices girando em alta velocidade. O título é uma referência à teoria desenvolvida em obra homônima por Zygmunt Bauman, na qual o filósofo aborda a liquidez, o escoamento, o descarte fácil e inconsequente dos bens consumidos, originando um fenômeno que atinge não só os objetos, como também os relacionamentos humanos.
Na segunda parte de Coração Arlequim aparecem os sonetos, modalidade que a autora ama e que é considerada “démodée, fora de moda” por muitos, como se a poesia precisasse desfilar em passarelas. Como qualquer outro formato poético, o soneto é atemporal e eterno, não tem como objetivo principal vestir-se das tendências atuais ou perseguir efêmeros quinze minutos de fama (Andy Warhol já entendia de Modernidade Líquida…). É uma forma fixa que requer habilidade, talvez por isto mesmo seja mais fácil rejeitá-lo do que fazê-lo. Além do mais, em tempo de inclusões, exclui-lo de forma tão radical parece-me um terrível contrassenso. Aplaudo então esta corajosa iniciativa da autora de exercer sua liberdade de expressão de forma ampla, para além dos preconceitos estéticos, achismos e fugazes invencionismos.
DesenCANTO
Tu és meu sonho descalço,
meu travesseiro rasgado
nos dias frios, gelados
de outono em que me desfaço
por conta do horror que passo
quando passas ao meu lado
com tua ira, com teus brados,
com teu olhar de rechaço.
Não sei se um dia terei
força e coragem de sobra
para mudar minha sina:
destino que camuflei,
pensando que fosse obra
ou ventura de menina.
Eis uma voz lírica sem pieguismo, que parte do “eu” individual para chegar ao “nós” coletivo, abrangente e múltiplo.
Originariamente, o papel dado aos arlequins era cômico, divertido, leve, engraçado, destinado exclusivamente ao riso fácil; entretanto, as posturas e atitudes deles foram sofrendo radicais transformações segundo os atores que o interpretavam, e com o tempo tornaram-se zombeteiros, irônicos, irreverentes, provocativos, satíricos, inclusive questionando a estrutura política da época, como lídimos representantes do povo em oposição à pompa e à majestade da realeza. Porém de repente, “não mais que de repente” (diria Vinícius), pergunto-me curiosa como Arlecchino terá chegado até a poesia de Márcia. Sinto que precisarei entrar mesmo que rapidamente na vida pessoal da autora, para tentar encontrar alguma resposta plausível.
Compactar em duas ou três frases o currículo de Márcia Sanchez Luz é missão impossível, nem tentarei – até porque meu intuito é outro. Digo apenas, então, que em sua bagagem, para além de escritora com vários livros publicados e já com uma consolidada trajetória literária, ela é professora e tradutora de inglês e francês, e empresária, proprietária de uma boutique de roupas na cidade onde mora. Eureka!, aí está, achei!!! Embora este último dado pareça totalmente irrelevante e supérfluo, é justamente através dele que percebo o elo de ligação da autora (consciente ou inconscientemente) com arlequim, cujo traje contém as “mil dobras de sua personagem alegórica”, no dizer do filósofo e historiador de arte Didi-Huberman. A vestimenta que o personagem usa o articula de imediato à sua dimensão simbólica: os “remendos” da indumentária (no começo remendos reais, feitos para tapar os puídos e rasgões no tecido) sugerem peças do seu ambíguo jogo de duplos – algo que foi feito e refeito, montado e remontado, revelado e escondido de si mesmo e dos outros. Muito do comportamento da figura de Arlequim expressa-se/oculta-se em seu figurino, também no uso da máscara, acessório que indica certo grau de disfarce e de mistério a serem desvendados. Já estampados em suas vestes, portanto, costuram-se o real e o imaginário, a ação e a ficção.
Não é à toa que artistas de todos os tempos seguiram as pegadas que conduziram à entrada deste secreto universo arlequíneo; nas artes plásticas a lista é extensa, citarei apenas dois deles: Matheus Da Costa, com seu Arlequim/soldado urbano e Picasso, que desde 1901 interessou-se por eles, e que os amou tanto a ponto de pesquisá-los e incorporá-los em várias fases da sua pintura, inclusive no retrato do seu filho Paul Joseph, em 1924. Na poesia e na dramaturgia também são inúmeros os criadores fascinados por arlequins: nossos Ariano Suassuna, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Menotti del Picchia, e o dramaturgo italiano Carlo Goldoni, dentre muitos outros.
Não se fixem pois, prezados leitores, em um único aspecto deste personagem, bem mais complexo do que à primeira vista aparenta, pois é esta riquíssima multiplicidade sensória do Arlequim a principal responsável pela sobrevivência dele entre nós até hoje. Desconstruindo justamente esta ideia reducionista de um Arlequim somente burlesco, a poesia de Márcia Sanchez Luz o desloca para a realidade dos dias atuais, transformando o personagem fictício em ser humano vivo, ao captar-lhe não só os instantes de alegria, mas também os de tristeza, reflexão, dúvida, incerteza, solidão, contemplação e lirismo, dentro do contexto de um theatrum mundi transformado aos nossos olhos, surrealisticamente – como observa a autora –, em potente liquidificador cada vez mais desgovernado. No fundo, o presente livro nos mobiliza tanto porque somos esse Arlequim compartilhando as memórias do nosso coração, e querendo criar novas memórias mais alegres com tudo e com todos.
Leila Míccolis
Pós-graduada em Escrita Criativa; Doutora e com Pós-doutorado em Teoria Literária (UFRJ); escritora de livros, TV, teatro e cinema
Cândido Mota, 29/6/2022
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O livro “Coração Arlequim”, de Márcia Sanchez Luz, pode ser adquirido no site da Arribaçã no seguinte link: http://www.arribacaeditora.com.br/coracao-arlequim/