Por Sandro Ornellas
1/6 de laranjas mecânicas, bananas de dinamite (2021) é o mais recente livro de W. J. Solha, publicado pela editora paraibana Arribaçã, e é o quinto poema de uma série projetada para seis livros do poeta, romancista, cordelista, artista plástico e ator (cf. O som ao redor). Dos cinco volumes publicados até agora, conheço outros três – Trigal com corvos (2004), Marco do mundo (2012), Esse é o homem (2013) –, mas comentarei apenas esse quinto, embora o diálogo com os demais esteja claro desde o início, por exemplo, na montagem do texto através de referências históricas, culturais e artísticas que fazem da série um grande painel intertextual da história.
Não me parece, no entanto, esta a sua vontade primeira – ser um painel –, mas o resultado da sua organização discursiva (ou “poético-filosófica”, como afirma). Todos os quatro volumes que li são longos poemas costurando referências que formam uma malha dramática de personagens, eventos e reflexões representando nosso esgotamento contemporâneo. De um lado, esgotamento da possibilidade de se fazer algo de novo em arte; de outro lado, esgotamento do próprio discurso histórico, esgotamento do futuro. Em 1/6 de…, à contemporaneidade só restaria repetir a história moderna como farsa, tragédia ou, como é dito a certa altura, comédia chapliniana (p. 46). Mas, nesse texto, o motor da história parece ser mesmo a farsa, particularmente no entrecruzamento desses diálogos dramáticos com a narrativa e as interrupções líricas.
É também como farsa que o discurso começa e termina re-citando-se ab ovo – “Perfeito desde o começo, / ab ovo, / o poema não teria um primeiro versículo como o do Velho Testamento…, / mas do Novo” (p. 09). Desejando-se perfeito, no poema de Solha – na longa viagem inventariando referências, eventos, obras e nomes – tudo não passa de desastre, erro e decepção na busca de uma impossível perfeição humana. Isso é percebido principalmente como falência da ideia de progresso, que se insinua sub-repticiamente, tanto em certos instantes do seu discurso, assim como na própria discursividade do poema.
A ideia de progresso é transformada em mito falido na impossibilidade do poema fazer seu próprio discurso progredir e avançar, mesmo quando de modo não-linear. Todas as dezenas de referências históricas e estéticas parecem repetir o mesmo princípio de impossibilidade, ilusão e falha de um discurso que conduza a história para um futuro melhor, mesmo como profecia: “Tudo / …velho / …como o evangelho” (p. 42), ou “Poeta / não é / P(r)o(f)eta. // Mas em tudo / há uma meta” (p. 43), ou “Tudo… anseio puro / de adiamentos do / …futuro” (p. 54). Não há no poema futuro melhor. Nem passado. A sua narratividade não avança, mas vai e vem, perdida entre referências labirínticas de uma história exemplar em decepções e catástrofes. Diferente da burguesa forma do romance, 1/6… descrê de qualquer aprendizado possível, de qualquer retórica aquisição de consciência – o que se deduz do arco histórico e geográfico que ele abrange e do modo como costura liricamente tudo.
O texto, portanto, ratifica essa falência do discurso também pelo que possui de lirismo poético. Por exemplo, o modo como as rimas são compostas – como aparecem em versos de grande oscilação rítmica – reforça a inércia do discurso. Rimas associando palavras, ideias ou nomes que parecem girar em falso, não por mero gosto de ludismo verbal, mas de uma sequência gaguejante, de interrupção em interrupção do que poderia ser dito, refirmando a crise do progresso do discurso e da ideia de progresso. Exemplo: “travellings… em Toda a Memória do Mundo, / glória do cinema francês, / de 56, / nos… desfiladeiros – entre estantes… da Bibliotheque Nationale – com o final … em nada transcendental, / tipo A idade da Razão ou Finnegans Wake: / numa pilha de / … Mandrake” (p. 14-5). Solha espalha rimas como pequenas bombas que vão explodindo ao longo, à medida em que caminhamos por seu texto. São rimas que impedem o discurso de avançar ou recuar, mantendo-se suspenso entre repetições fonéticas e diferentes referências, como pede qualquer lirismo forte. Eles chamam muitas vezes mais a atenção para si do que para o que se diz, roubam a atenção, vão para o primeiro plano. Isto é: a discursividade se encontra interrompida por um lirismo antidiscursivo nas rimas: “e a mente, / a que nada, / jamais, / diz “Basta!” / se verá, / então, / …vasta, // … como o fundo falso das poças rasas, / com o céu, o sol e a lua, / estrelas, / nuvens, / e tudo que tem / … asas // coisas que …persistem, / mesmo que se saiba que – em sua transmissão ao vivo, quase / … subjetivo – apenas de certo modo / existem” (p. 58-9). Esta última passagem é também exemplar de outro recurso que reforça o ímpeto interruptivo: as reticências, que parecem nesse livro carecer de maior funcionalidade pelo seu uso excessivo. Embora o excesso também esteja nas referências, nas utopias, nas rupturas e nas esperanças e nas frustrações, que a certa altura impõemRemover imagem destacada um “etc etc etc” (p. 36) para se referir a Picasso, como se o excesso de informações na contemporaneidade exigisse do poema apenas o ato de dar a referência, sem precisar de maiores reflexões. Nada mais. Nada além.
O poema vai, em sua progressão narrativa, sofrendo todo o tempo com quedas líricas que põem por terra qualquer maior ordenação de sentido. O texto sempre parece retomar essa ideia de falha no progresso. Aproximando a arte moderna da bomba atômica, Solha explicita: “ou entre as… obras… de cubistas… e abstracionistas / do século seguinte, / o XX, / em que essa… premonitória desintegração… culminaria em sua obra-prima: / Hiroshima, // depois da qual / a arte / de Picasso, / perderia espaço” (p. 61). O mito do progresso estético precede o real progresso técnico e prepara a destruição potencial do fato da vida humana. Qualquer semelhança com a pandemia não é mera coincidência.
Mas se tal raciocínio sobre o progresso como mito conduziu vários contemporâneos nossos ao reacionarismo que vimos brotar na última década brasileira, ele conduziu o poeta justamente à constatação do fim dos anseios modernos, não à sua conservação ou, pior, regressão política. Qualquer projeto moderno hoje (da “democracia” à “individualidade” ou à “autonomia”) é uma gigantesca “work in progress” que nos mantém programados e engajados em metas impossíveis, mas que simulam desejos divinos na criação humana: “mas… o que seria, / então, / a soma dos objetivos, / que nos mantém / vivos / … no engajamento… programado, / compulsório, / … a um work in progress permanentemente / … provisório? // Falha das mitologias (da grega e hebraica à tupi-guarani), a de nos terem dito… coisas dignas de Dali: / que Deus teria feito o homem do barro, / como o oleiro faz o jarro / …e a vida, / em nós, / teria sido inserida – por uma das generosidades divinas – através do sopro nas …narinas, / ou a nós teria sido dado o fogo dos deuses, roubado, // […]” (p. 26-7). Aqui o poeta enuncia com todas as letras o progresso e o destino humano como mitos, a exemplo de Prometeu buscando propósitos em se estar vivo. Disso, só teria restado um discurso religioso laicizado na forma de um progresso histórico que nos legou a bomba atômica, o controle tecnológico e a catástrofe ambiental.
Paro por aqui, e sem concluir, pois que comento apenas o quinto dos “seis tratados poético-filosóficos” de W. J. Solha. Se 1/6 de laranjas mecânicas, bananas de dinamite é de 2021, falta o sexto e último livro a completar a série e apontar para algum fim. O próprio pensamento do poema não se conclui, pois o texto se fecha como começou, “ab ovo”, cobra mordendo o próprio rabo e girando em falso pela história como poesia, história cujo impasse hoje percebemos com clareza cristalina diante de nós. Pedimos apenas ao poeta que o fim da série chegue antes do fim do mundo, já que o poema não tem fim.
Sandro Ornellas é poeta, escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Bahia. Autor de Dói-me este mundo de violentas esperanças (Patuá, 2021), Em obras (Cousa, 2019), Linhas escritas, corpos sujeitos (LiberArs, 2015), dentre outros. Texto publicado na Revista Diversos Afins.
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