“Esta nossa existência é transitória como as nuvens do outono.
Ver o nascimento e a morte dos seres é como olhar os movimentos de uma dança.
Uma vida é como o clarão de um relâmpago no céu, rápida como uma torrente que se precipita montanha abaixo”. (Buda)
Desde que ROSÂNGELA VIEIRA ROCHA iniciou a divulgação do lançamento de seu novo livro, O CORAÇÃO PENSA CONSTANTEMENTE (Cajazeiras: Arribaçã, 2020), fiquei curiosíssima sobre sua narrativa. Por duas razões principais: a primeira, porque eu já tinha uma breve noção de que o tema seria importantíssimo, principalmente nesses tempos em que os laços afetivos, ainda que de modo virtual em sua maioria, são alento fundamental para resistirmos ao isolamento e às tristezas cotidianas da pandemia que assola o mundo. A segunda, porque o título de um livro invariavelmente me atrai como um ímã – e com esse não foi diferente. Aliás, foi instantânea a atração, desde o primeiro momento em que tomei conhecimento dele. Títulos de livros funcionam para mim como uma ‘armadilha boa’. Fico hipnotizada por eles, para dizer o mínimo do máximo efeito que me causam.
Pois bem. Hoje, finalmente posso afirmar que consegui devorá-lo por inteiro, o que fiz em três dias e, completamente envolvida, preciso dizê-lo. ‘O Coração’ fala sobre laços afetivos. É um livro sobre o feminino. Sobre o universo da sororidade e suas implicações internas, exatamente porque sororidade diz respeito às questões femininas de mesmos ideais, propósitos, apoio mútuo, empatia, acolhimento, buscando principalmente desfazer as complexas lutas [psicológicas] competitivas, muito comuns nas famílias. O termo é relativamente recente no dicionário. Tem origem no latim, ‘soror’ – irmã. É a “relação de união, de afeição ou de amizade entre mulheres, semelhante à que idealmente haveria entre irmãs”, como registra o ‘Dicionário Priberam’. Também, a “relação de irmandade, união, afeto ou amizade entre mulheres, assemelhando-se àquela estabelecida entre irmãs”, de acordo com o ‘Dicionário Online de Português’.
Ao mesmo tempo em que descortina os horizontes d’antes quase fechados da sororidade, ‘O Coração’ trabalha [constantemente] com as memórias da infância da protagonista – tal qual a autora, a irmã caçula de uma família de cinco filhas mulheres – especialmente no que diz respeito à sua ligação e admiração profundas por uma irmã mais velha. Também traz à tona o delicado e sofrível tema da perda pela morte, do luto, assunto esse sempre muito bem tratado nas obras de Rosângela [especialmente em um de seus livros anteriores, ‘O indizível sentido do amor’].
Como bem lembrado por Linaldo Guedes, na orelha do livro, “nesta nova obra, o estilo de Rosângela, de costurar o passado e o presente simultaneamente, prevalece, com absoluto domínio das técnicas narrativas”. Essa ‘costura’ é minuciosamente planejada, traçada com esmero, formando uma incrível ‘colcha de retalhos’ das memórias, um equilibrado quebra-cabeças, onde ora a gente viaja ao passado, ora se depara com o presente, mas sem sustos, de maneira delicada, às vezes tão tênue como uma fina cortina de voile [voal] separando as lembranças em janelas distintas, mas que se abrem ao horizonte de uma mesma verdade: sim, o coração pensa – constante, incessante, simultaneamente às emoções, que se misturam a todo instante no imenso caldo dos laços afetivos da existência!
Rosângela sabe dizer sobre a morte – e o luto – de maneira impressionante. De um modo tal, que sua narrativa nos atravessa a alma, perfurando cantos desconhecidos, colocando-nos à prova, porque nem sempre conseguimos tratar com a serenidade necessária tema tão delicado e dolorido. Quem sabe, por isso mesmo tenha a autora recorrido ao ‘I Ching’, ou ‘O Livro das Mutações’, para inspirá-la sobre o título do livro? Pois, o que é o coração – além do órgão muscular responsável pelo bombeamento do sangue por todo o corpo – a não ser ‘a morada’ mais intrínseca da alma, das conjecturas e dispersões, das fantasias e desilusões, das dislexias dos sentimentos, que incessantemente circundam, e enlaçam, e enovelam, o mais profundo sentido do amor? Pois bem, como mencionado na orelha, “na sabedoria chinesa, pensar é sentir, eis a chave desta obra”. E Rosângela sabe exatamente como exercitar o coração nessa ‘dupla tarefa cardíaca’: ‘pensa sentindo’, e ‘sente pensando’, com a característica impecável da sua escrita. A sororidade nasce também aqui, entre as páginas de um livro que vasculha nos longínquos do tempo, entre os sentidos da passagem do tempo – por ela e suas lembranças –, entre as dores da perda da irmã, também indizíveis, como outrora também já fora, e sempre será, ‘o sentido do amor’!
‘O Coração’ é dedicado à memória de sua irmã Edna, a personagem Rubi. A protagonista é a irmã caçula Luísa, e a narrativa é toda conduzida na primeira pessoa, que vai e volta no tempo, costurando “o passado e o presente simultaneamente”, entre as recordações da infância e juventude, e as dores do presente, com a perda da irmã Rubi. Por primeiro, é o presente que nos toca, e ‘O Coração’ pensando em detalhes sobre a morte de Rubi, instante esticado sobre os dias da vida de Luísa: “É apenas pelo instinto de sobrevivência que me alimento. Vontade não tenho nenhuma. Faz frio, sinto muito frio. Você partiu há uma semana, mas só hoje começo a ter consciência disso, com a certeza do corpo e do espírito. (…) Quero que volte, que ressurja de onde a puseram, que se rebele, fiel à sua essência um tanto transgressora e avessa à aceitação de decisões alheias. Quero que receba de novo o sopro de vida com que foi concebida. Não tem sentido permanecer aí deitada. Tanto a fazer ainda, pessoas por conhecer, países e museus a visitar, delicadezas a serem concretizadas, gargalhadas por ecoar” (pág. 14). Luísa sabe que o luto irá passar. Rosângela já passou por isso antes. Eu passei, você passou, todos sabemos: é preciso acreditar que haverá um dia em que nos habituaremos aos vazios deixados por aqueles que partiram antes de nós. Todos sabemos o que significa perder. Também sabemos que o luto jamais acaba – passa, mas é interminável a luta para que não nos estrangule por completo a esperança pela vida – pois é preciso viver, apesar de. É preciso viver no efêmero – em toda a sua quase mínima plenitude.
Luísa vai ao passado, depois retorna, muitas vezes exausta do presente tão dolorido. É preciso, mais do que nunca, buscar lembranças, quase como uma ferramenta urgente de manter viva a presença de Rubi. Luísa não se permite, jamais se permitirá, eis que o mantra já está marcado como uma tatuagem bem delineada em sua alma: seu coração há de pensar [sentir] constantemente, para não esquecer! Então a caçula observa e escreve minuciosamente sobre o desenrolar da vida da irmã Rubi, 10 anos mais velha, sua referência de vida na infância, juventude, vida adulta. Os objetos pessoais a serem repartidos, doados, depois de sua partida, as roupas, a elegância impecável da irmã quando jovem, a dor de vasculhar e escolher alguns pertences, e o que pensa o coração no instante da partilha: “Esse fato – não sei como explicar, pois objetos significam pouco para mim – me doeu e dói como um caco de vidro debaixo da língua” (pág. 24). Luísa precisa falar sobre a irmã, como uma forma de eternizar sua existência perante o tempo, tão fugidio. Como um meio de ela própria, Luísa, não correr o risco de se desintegrar, caso não o faça: “Rubi, não estou escrevendo sobre a sua vida. Não sou a sua biógrafa e muito menos sua intérprete. Sou a sua irmã caçula, e quero contar como foi o nosso relacionamento, como é ainda, pois você está absolutamente viva e plena dentro de mim. Quero tentar esmiuçar o afeto que sentimos uma pela outra, é disso que quero falar. O meu tema são as irmãs, a riqueza do vínculo que as une, a sua proximidade, a identificação, a lealdade que existe entre elas. Uma história de amor fraterno, provavelmente um dos mais bonitos que existem, a base de todas as congregações, religiosas ou não. O pilar das comunidades, historicamente, é a fraternidade. Sem o amor ao próximo, perdemos por completo a nossa humanidade” (pág. 29). E assim o faz, de forma profundamente tocante.
Toda a narrativa é direcionada às emoções oriundas dos laços familiares. Não há como escapar do coração, quando se trata de relações familiares, tristes ou felizes. E a autora navega equilibradamente entre razão e emoção, trabalha com delicadeza tanto as dores quanto as alegrias, de modo que se torna serena a leitura, ainda que nos atinja a alma e nos faça tantas vezes verter lágrimas! Sim, n’O Coração’ também há alegria, pois a gente ri, a gente se diverte muito diante das lembranças da juventude das irmãs, tão recheadas de episódios felizes, engraçados, surpreendentes! Luísa nunca se distancia do coração – pois, o que há nele, a não ser variações sobre o mesmo tema, o amor, em todas as suas nuances e possibilidades? Porque amar é assim, sentimento construído das inúmeras matizes de tintas que permeiam a tela do existir! E quando a sororidade é o pano de fundo dessa narrativa, é bem certo que a tela será composta de profundidades quase inexplicáveis à razão humana: “Como explicar a intimidade que há entre duas irmãs? O que poderia ser comparado a esse laço quase mágico, esse saber da outra e saber que ela sabe de nós? Em que contexto, em que relação essas emoções se reproduzem? (…) Só os que têm irmãs podem entender a essência, o núcleo, a delicadeza e a beleza desse vínculo. Que não é imune a conflitos nem rivalidades, mas consegue sair incólume das desavenças, por ser feito de matéria incorruptível e perene” (págs. 50/51).
‘O Coração’ é um livro sobre o amor. E sobre a dor. É um livro sobre a vida. E sobre a morte. Luísa precisa falar sobre a morte, não há como escapar. “Para mim, os lutos vão se seguindo como contas de um colar doloroso, que espetam como cardos. Nunca terminam definitivamente, ficam de tocaia, marcados na pele e nas entranhas a ferro quente. (…) Antes do início das perdas essenciais, havia, de alguma maneira, certa inocência, fé e inteireza que hoje não mais existem. Caminha-se, apesar de. Carrega-se nas costas um embornal de estopa contendo pedras, areia, cacos de telhas, raspas de cimento. As alegrias, mesmo as grandes, são em certa medida embaçadas por esse peso, pois até o corpo se recusa a retornar à leveza anterior” (pág. 40). O tema é absolutamente atual, o livro foi escrito, se não por inteiro, mas em grande parte, durante esse longo período mundial de pandemia, que já se estende por quase um ano. E a protagonista diz explicitamente: “Nenhum dos meus mortos acreditaria no que estou vendo hoje” (pág. 87). Ela está falando da morte que a rodeia diariamente, o tempo dela é hoje – depois disso ainda é agora – eu também diria. “Quantos de nós estaremos vivos quando a coisa tiver fim?” (pág. 89). Luísa pensa muito sobre a morte. A sua morte. Sua curiosidade sobre o processo é flagrante: “Gostaria que cada um dos meus mortos me contasse como foi, se havia uma consciência exata do que estava para ocorrer, os pensamentos que tinha, como era a antessala, o hall de entrada para a nova morada ou condição” (pág.92). E quem de nós não carrega em si as mesmas perguntas? Há um luto duplo permeando a vida da autora, há muitos lutos cotidianos perpassando nossas vidas, seus leitores e leitoras, uma vez que infelizmente não há como fugir à realidade mundial da covid-19.
É um livro sobre a eternidade dos laços afetivos. E sobre finitude, sobre como compreender a questão da efemeridade de toda a vida, e das transformações inexoráveis que ela vai esculpindo minuto a minuto em nossas entranhas. E o que sobra de tudo isso, que muitas vezes parece tão pouco? Sobra o amor, o sentimento que costura e remenda os buracos, impedindo que o navio afunde de todo, mesmo que por pouco tempo. Sobra o amor, único sobrevivente de todos os nossos naufrágios humanos. E que se perpetua de geração em geração, como um bote salva-vidas. Que vidas? A sua, a minha, a de cada um que passa pelos campos da Terra e aceita, ou não, o sentido da vida. Qual o sentido da vida? Ainda que não consigamos encontrar nenhum, que ao menos saibamos alcançar alguma compreensão sobre ‘o coração que pensa [sente] constantemente’, e AMA!
Ao terminar a leitura, lembrei de um trecho lido em ‘O livro tibetano do viver e do morrer’, de Sogyal Rinpoche (São Paulo: Talento, Palas Athena, 1999, pág. 45), que trata sobre a impermanência: “Percebi que há coisas que cada pessoa foi enviada à terra para realizar e aprender. Por exemplo, partilhar mais amor, ser mais amorosa com os outros. Descobrir que o mais importante é o relacionamento humano e o amor, e não as coisas da matéria. E entender que cada pequena coisa que se faz na vida é registrada, e mesmo que você passe por ela sem pensar na ocasião, ela sempre vem à tona mais tarde”. Creio que esse livro comprova essa importância: o relacionamento das irmãs Luísa e Rubi demonstra o quão genuíno, verdadeiro e profundo é o amor que as uniu e que as unirá sempre, transbordando além dos limites (aparentes) da matéria. E, ainda que a morte física seja muro quase intransponível aos olhos de quem aqui fica, e que a gente constantemente se indague ‘por que todas as coisas mudam?’, encontraremos sempre a mesma resposta: ‘é assim que a vida é’. Sim. É assim que é a vida. “Mas há a vida que é para ser intensamente vivida, há o amor. Há o amor. Que tem que ser vivido até a última gota. Sem nenhum medo. Não mata” (Clarice Lispector, ‘Mas há a vida’, in: ‘A descoberta do mundo’, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, pág. 539).
(Resenha publicada na Revista Ser MulherArte. Nic Cardeal é escritora/poeta integrante do Mulherio das Letras BR e do Paraná)