Por Joel Cavalcanti
O livro Nordeste nunca houve (Editora Arribaçã, R$ 50) nasce de um incômodo sobre como é forjada a concepção homogeneizante de nove estados brasileiros como sendo um refúgio do atrasado, do saudosismo e do árido. Como diz a música do cearense Belchior, da qual é retirado o título da obra do pesquisador campinense Johniere Alves Ribeiro, o Nordeste é uma ficção! E é justamente a obra literária ficcional dos romances nacionais contemporâneos a base da análise do autor para negar to[1]dos os estereótipos de uma estética da fome e da seca que perduram até hoje. Estruturado em uma linguagem ensaística, a obra está em campanha de financiamento coletivo e tem previsão de entrega dos exemplares para o próximo mês de junho
Nordeste nunca houve é fruto da tese de doutorado em Literatura e Interculturalidade pela UEPB de Alves Ribeiro. No texto, ele responsabiliza essa visão ultrapassada ao poder estatal, à elite econômica e intelectual, assim como algumas obras literárias. “A partir da Literatura, vou tentando desconstruir esse Nordeste e mostrar que mesmo na Literatura contemporânea existe espaço de ambiguidade entre o Nordeste que se propõe como tecnológico e que acompanha a globalização, mas que ao mesmo tempo as pessoas conseguem cristalizar a imagem do passado”, descreve o professor e poeta paraibano, autor também dos livros Página para versos e Fogueira de espelhos ou alquimia do cais. Para respaldar a análise, Alves Ribeiro lança mão de romances como Angústia (1936) e S. Bernardo (1934), ambos do alagoano Graciliano Ramos, que constrói uma Maceió conectada à modernidade e à industrialização. “O Nordeste moderno tinha como acontecer, mas isso não veio devido a uma programação proposital e política de nossas elites locais”, afirma. Entre os romances contemporâneos, o autor cria paralelos comparativos com Galileia (2008), do cearense radicado no Recife, Ronaldo Correia de Brito, que descreve uma transição entre o tradicional para o novo. “Mas tradição vejo também como invenção, a criação de um discurso. Eu estudo literatura de cordel desde o mestrado e percebo o cordel como algo muito moderno, diferentemente do pensamento de alguns folcloristas, como Câmara Cascudo. Já Drummond via o cordel como altamente moderno”.
Esse mesmo Nordeste submetido aos estigmas da fome e da seca está presente em obras seminais do movimento regionalista. Porém, isso é conciliado com a construção de narrativas subjetivas e com personagens densos que são consideradas inovadoras ao ponto de consagrar escritores e escritoras locais entre os mais importantes do país. Em Nordeste nunca houve, o pesquisador paraibano faz críticas, por exemplo, ao pernambucano Gilberto Freyre e ao cearense Djacir Menezes, que publicam livros definindo o que seria o Nordeste, quando a região teve suas divisas definidas durante o governo de Getúlio Vargas. “Se São Paulo e o Sul eram modernos, o lugar que coube ao Nor[1]deste, na visão de Gilberto Freyre e Djacir Menezes e todos aqueles que participaram do grupo regionalista de Recife, era o de tradicional”, pontua o paraibano.
“Quando as elites agrárias nordestinas perdem o poder econômico, resta apenas o político – e essas pessoas vão se tornar deputados e senadores. Para eles, foi interessante manter o Nordeste no estigma da tradição e isso é levado para a Literatura”, acrescenta Alves Ribeiro. Apesar de fazer essa análise a partir da criação literária, ele aponta igualmente a Literatura como uma das formas de promover uma mudança nessa perspectiva atrasada. E os exemplos sempre existiram e permanecem surgindo. “Morando em João Pessoa, você tem autores como Roberto Menezes e Débora Ferraz. Dois autores nordestinos, o primeiro mais urbano, e a Débora de Serra Talhada (PE). Se a gente pega o livro dela, Enquanto Deus não está olhando (2014), em todo o livro não há um aspecto da fome e da miséria. Tanto ela quanto Roberto Menezes fogem completamente disso. Essa possibilidade literária já existe”, assevera o pesquisador.
Para virar uma chave e a visão antiga do Nordeste ser superada, Alves Ribeiro enxerga que além dessas soluções endógenas, fruto da produção de autores locais com rica produção fora do contexto do atraso, há ainda uma necessidade de uma solução exógena. “Não é interessante para as grandes metrópoles ter um concorrente forte como o que o Nordeste representa. Quando existe um investimento político e econômico, os filmes, as peças, os livros crescem juntos e a cultura dá saltos galopantes. Isso tiraria o Nordeste desse estigma”.
No livro de Johniere Alves Ribeiro, o Nordeste é descrito como uma espécie de região outsider, mas quase nunca um local desterritorializado dentro do próprio Nordeste e do Brasil. Para romper os paradigmas preconceituosos, a obra visa remapear os mais variados caminhos que possam levar aos diversos Nordestes. E não ao Nordeste que foi imposto. “Seca, fome e miséria não são problemas só da nossa região. Fatores sociais e políticos, que não são meramente naturais e climáticos, favorecem muito mais essa ideia. Vou tentando desconstruir esse Nordeste que foi posto, lançando uma perspectiva de um Nordeste que já está aqui, que sempre foi tecnológico. O Nordeste nunca houve porque foi uma construção este Nordeste do atraso e folclórico. O Nordeste é fabricado por meio da linguagem, por meio da arte”, finaliza Johniere Alves Ribeiro.
* Texto publicado no jornal A União, em 14 de março de 2023