Por Amador Ribeiro Neto
A pandemia foi período de reclusão e sofrimento. Dor que desestruturou famílias, levando filhos, pais, pais e filhos. Dor que dizimou famílias. Dor tão inenarrável que, passados dois anos, evita-se falar-se nela, como se, ao pronunciar seu nome, ela fosse evocada tragicamente, e fosse ressuscitada.
Para 700 mil brasileiros, a pandemia foi a pior que poderia acontecer: a morte.
Esta dor lancinante, que inutilmente procura-se ocultar, dissimular, jogar para debaixo do tapete da memória, uma hora terá de ser erguida, tal qual um obelisco. Ser vista, apreciada, vivenciada e entendida. Afinal, um trauma não se sublima, elabora-se – ainda que não esqueça.
Uns lidaram com a pandemia e o isolamento com entorpecimento e apatia. Cessaram de viver enquanto na clausura. Esperavam sem saber pelo que. Resguardavam-se, simplesmente. Acataram a noite branca que se abateu sobre eles e o tempo estancou como uma chapa de ferro que recai sobre os corpos dos condenados. Era um deitar e acordar no escuro. Anestesiados, respiravam a espera dentro do nada.
Para outros, restava-lhes a hiperatividade: ocupar-se integralmente do amanhecer até a madrugada quando o sono os desabava qual golpe de machado na nuca. Mal acordavam e já se ocupavam com plantas, cachorro, gato, noticiário, avanço das contaminações, número das mortes, incompetências governamentais, limpeza do apartamento, leituras interrompidas, filmes, mensagens das redes sociais, maratonar séries, cozinhar, atividades físicas ao redor dos móveis do apartamento, etc,, etc., até o golpe do machado fazê-los desmaiar.
Para raros, muito poucos, a dor da pandemia foi ansiedade, dor, tristeza e perda, mas convertida em criação. Leonardo Davino é um destes. Domingou Apandemia (ed. Arribaçã, 2022) é seu testemunho sobre esse período em que ele chorou, cantou, deu aulas, dançou e, acima de tudo, redigiu uma crônica poético-política sobre estes tempos difíceis.
Estruturando os capítulos com citações bibliográficas e composições musicais, sem nunca demonstrar um pingo de tinta acadêmica, Leo é dono de um texto fluente, leve, que flerta com a oralidade. Quando cita trechos de canções é impossível não cantarolar com eles – e com ele.
Que fique claro: a oxigenação da linguagem vem da clareza das ideias de Leo. Não há esforço algum para entender-se o que o texto diz. Tudo ali está com a simplicidade e beleza das coisas sábias. E a sabedoria, sabemos, prescinde da complexidade.
São muitos os momentos de encantamento e deslumbre. Ainda que a dor seja inevitável nestes tempos de revelações exteriores e internas. É o caso do seu gato Miruca, que sagazmente acompanha seus menores movimentos interiores com grande cumplicidade. Ou a dor e a indignação ao descobrir que alguém valeu-se do CPF de sua recém-falecida “mainha” (como ele a chamava carinhosamente) para receber o auxílio emergencial do governo. Por outro lado, o privilégio de ter o sol na varanda em tempos de recolhimento. Mas também faxinar e defumar a casa, pois o isolamento exige estes serviços de cada um.
Cabe registrar sua paixão, ou melhor, obsessão pelas sereias – que do signo da leitura espalha-se por inter e extrasignos pansemióticos de sua vida. Prova concreta de que a literatura não somente humaniza como estetiza o mundo de todos nós. “O presidento que gastou BILHÕES para comprar deputados é o mesmo presidento que que abandonou a população na pandemia”, escreve com todas as letras, num registro duro, cruel, real. As aulas e reuniões remotas. Os e-mails, as mensagens de Whats´App. As canções no aparelho de som. Os shows pelo Youtube. É preciso cantar e saudar a vida.
Cozinhar, Tomar vinho. É preciso celebrar o corpo. Ainda que milhares o percam tragicamente. Um ano de Covid19. O presidento não compra e não deixa comprar vacinas. Num único dia 2.349 mortes. Leonardo encerra o relato de cada dia com uma citação de uma canção de Gil. “Oxalá Deus queira/ Oxalá tomara/ Haja uma maneira/ Deste meu Brasil melhorar”.
Observando o desgoverno do país, tanto federal como do estado e do município do Rio de Janeiro, Leonardo, como um roteirista que sabe manter o espectador atento à trama, intercala momentos de tensão com os de lirismo. Assim, as observações doloridas das vítimas do vírus, do descaso, e mesmo do sadismo do governo federal, o autor atravessa o texto com passagens e memórias de poesia, citações literárias e filosóficas. Muitas vezes sociológicas, antropológicas, psicológicas, mas que encontram na filosofia seu vetor de convergência. E esta é uma das colunas basilares de seu livro: uma reflexão acima de tudo poética, sobre a vida, a partir do isolamento imposto pelas condições sanitárias da Covid19.
Um diário sem o diacronismo maçante dos fatos alinhados cartesianamente. Um diário sem os delírios das fantasias ao léu, escritas sob a inspiração real dos sonhos. Mas, sim, um diário em linguagem clara, direta, objetiva, ao mesmo tempo reflexiva e poética, com o registro da taxa de informação, sem abrir mão do prazer do texto.
No 64º domingo de pandemia, uma mostra de como o autor equilibra a mais funda dor subjetiva do luto aos afazeres profissionais acadêmicos. Um equilíbrio que não deve ser zen, mas que sabe ser maduro e essencial para a vida seguir em paz. “Mainha faria 63 anos hoje. Comprei flores, queimei incenso, rezei o terço, louvei Nanã e passei o dia ouvindo as canções de Elba que você cantava em casa, mainha. Contatar irmandades e redes de solidariedade. “Tá difícil ser eu sem reclamar de tudo”, cantou Gal, e disse: “força a gente tem e a gente arruma. E não há de haver quem nos derrube”. Em circulação desde 1999, a revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, qualificada como A1 na avaliação da Capes, encerrou suas atividades devido à falta de financiamento. Aulas, orientações, reuniões, encaminhamentos, bancas remotas. A corja do presidento segue atacando as instituições de pesquisa e ensino públicas, gratuitas e de qualidade”.
Então, o que o leitor lê não é um diário de isolamento feito de amargura. Tampouco um diário de isolamento feito da celebração da vida incondicional. Em ambas as situações prescinde-se da realidade. O que Domingou Apandemia traz é uma narrativa da vida sob a Covid19 por uma pessoa que, tendo perdido a mãe, fez questão de não sucumbir num luto imobilizador, nem tampouco num negacionismo fantasioso. Traz o relato sensível e sensato de dor e felicidade, alegria e slow motion de uma psiqué e um corpo que buscam entender e vivenciar o melhor modo possível de experimentar um jeito novo de viver isolado, apostando que um dia sairia daquela situação, voltando à vida em sociedade. Com literatura, música e muita arte. Arte da palavra, arte da vida.
* Texto publicado no Correio das Artes, suplemento do jornal A União, março de 2023
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O livro “Domingou Apandemia”, de Leonardo Davino, pode ser adquirido AQUI